quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar (III)

Dia 3 – 06-08-2014

            Como não podia deixar de ser, a noite foi de trovoada. Creio que ainda não houve férias em que não apanhássemos pelo menos uma noite de trovoada. A experiência da trovoada em terras altas para pessoas meridionais como nós tem grande impacto. Se levarmos em conta a validade científica da contagem dos segundos que decorrem entre a visualização do relâmpago e o som da trovoada, tornou-se óbvio que a trovoada estava bem longe, mas o som dos trovões ecoava pelas gargantas e desfiladeiros e prolongava-se por muito tempo. Foi assim uma tempestade com ar épico. Mas a tenda aguentou-se bem e não houve danos materiais. Clima de montanha é assim, imprevisível e chuvoso.
Manhã gloriosa, ar lavado, nuvens no céu, mas sem grande aspecto de chuva. Dada a proximidade a que estávamos da Ruta del Cares (a 7 km) e ainda à nossa expectativa, que era grande, decidimos fazê-la neste dia. Assim, depois do pequeno-almoço, equipámo-nos com umas mochilas com comida e água e lá fomos. Seguimos de carro em direção a Poncebos. Mais uma estrada estreita de montanha à beira da garganta por onde serpenteia o Rio Cares. Li algures que é um dos rios mais selvagens dos Picos da Europa. O que me surpreendeu foi a como a noite anterior aumentou o seu caudal de forma visível a olho nu. Imagino isto no inverno e quando a neve derrete. A cerca de 2 km de Poncebos, há dois orientadores de trânsito, colocados junto a um parque de estacionamento enorme, que nos informam que os parques em Poncebos já estão cheios e que será melhor deixarmos já lai o carro. Também nos disseram que às onze passaria um autocarro que nos levaria até Poncebos. O entusiasmo é um grande combustível. Não quisemos esperar e fizemos essa distância a pé, mas não sozinhos. Começo a acreditar que a Ruta del Cares é mesmo bastante concorrida, há imensa gente a preparar-se para o mesmo que nós, mas temos que admitir que muito melhor equipados, quer com roupas, quer com equipamentos de apoio. Vou confirmando esta ideia de que os percursos pedestres são um desporto muito popular por aqui.
Cruzamos o rio na ponte de Poncebos, junto à central elétrica, onde é visível o momento em que parte do caudal do rio lhe é devolvido. Passo a explicar. A Ruta del Cares é um caminho cavado na montanha que acompanha o canal construído entre 1919 e 1922, desde a povoação leonesa de Caín até à vila de Pocebos, nas Astúrias, levando a àgua do Rio Cares por um canal cavado na montanha, ora a descoberto, ora correndo no seu interior, durante 12 Km. Era este o percurso que nos propúnhamos fazer.
Em Poncebos havia grandes cartazes a anunciar a oportunidade de comprar o bilhete de autocarro que nos permitiria regressar de Caín. Não quisemos comprar, nem nos quisemos informar, prova da nossa impreparação e de algum espírito aventureiro, que, alguns dias depois, me parece pura irresponsabilidade. Mas temos tido sempre sorte, é o que vale.
Assim demos com o início do percurso, cuja placa informativa nos dizia que duraria cerca de seis horas, nada de mais. Ali tinham início outros dois percursos, o da Reconquista, com uma duração de nove horas e um outro para o Refúgio de Cabrones, mais um Pico bem concorrido, este com uma duração de 5h45min. Definitivamente aqui caminha-se a sério.
Claro que o percurso começa logo a subir por um caminho pedregoso e bastante árido, que ao fim da primeira hora de caminho me deixou completamente sem fôlego. O sol da montanha brilha inclemente e lembro-me de um senhor em Cabrales nos ter dito que estava um bom dia para fazer a rota, espero que aquilo não fosse irónico.
As vistas começam desde logo a deslumbrar-nos. São as paredes rochosas que se erguem à esquerda e à direita, íngremes, caprichosas, verdadeiros tratados geológicos que não consigo interpretar completamente, ah, mas queria muito. Torturo o meu filho, que acabou o 11º ano da área de ciências, para me ir explicando algumas coisas, a que ele vai atendendo com alguma impaciência. Aqui vale mesmo a pena usar a máquina fotográfica. Vemos por cima de nós algumas cabras selvagens, ouvimos o piar bem característico das águias, ou outras aves de rapina, que a biologia também não é a minha especialidade. El alguns pontos, o ruído das águas, que não chegamos a conseguir ver, sobe até nós, afirmando o poder do rio que há milhares de anos amolece esta pedra dura.


















Quando se diz que este é um dos percursos mais concorridos é mesmo verdade. Avancei até a hipótese de que as praias das Astúrias são tão calmas, porque a maioria das pessoas está a fazer este percurso de montanha. Arriscaria até a comparar a Ruta com o paredão da Nazaré em Agosto. Havia jovens casais a carregar bebés em mochilas às costas, com um prático protetor para o sol. Havia gente corajosa que faz o percurso a correr. Havia pessoas bem mais velhas do que eu a caminhar animadamente e a ultrapassar-me com uma velocidade que fez com que nunca mais os visse. Havia pessoas em sentido ascendente e em sentido descendente. Cruzámo-nos com uma família completa: um casal, dois filhos, que não teriam mais do que cinco anos, e os avós, iam caminhando um pouco mais devagar do que a maioria das pessoas e animando as crianças com a aproximação de uma gruta, que é quando o percurso avança pelo interior da rocha. Não me lembro de todos os exemplos que me surpreenderam, mas eram diversos e diferenciados.
De vez em quando, o canal corria a céu aberto. Trepávamos para ver a água que deslizava rapidamente, a uma boa altura e transparente. Com o calor que estava, ainda bem que no canal se ia repetindo o aviso da proibição de tomar banho por se tratarem de águas rápidas, a tentação era muito grande. Em alguns pontos, a parede abria uma brecha mínima de onde jorrava um fio de água para o caminho e era ver-nos a aproveitar para nos molharmos um bocadinho.
Emocionante foi também o momento em que se assinalou que tínhamos saído das Astúrias e já estávamos em território leonês.

Fomos pontuando a caminhada com paragens, ora para apreciar o espetáculo natural esmagador que tínhamos perante os olhos, ora para comermos, ora para aproveitarmos umas breves tréguas de sombra, mas sempre fascinados e encantados, sim, e também cansados.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Fica o desejo de voltar (II)

Dia 2 - 05-08-2014
           
           
            A tenda está montada, quer isto dizer que estamos instalados. Os outros voltaram a deitar-se e continuam a dormir, eu sentei-me cá fora a ler: A viagem dos inocentes, de Mark Twain. Parece apropriado ler um relato de viagem quando se está a viajar. É uma leitura apelativa e, em alguns momentos, verdadeiramente divertida. À minha frente uma numerosa família ou grupo de viajantes holandeses toma o pequeno-almoço. Nunca houve parque de campismo em que me instalasse onde não houvesse holandeses. Tenho para mim que são o povo que mais faz campismo. Era inevitável, também o sono se abateu sobre mim. Fui dormir.
            Dormi pouco, porque os ruídos do parque me acordaram e consegui convencer o Tó a levantar-se também. Aos miúdos parece que nada os vai arrancar da cama nas próximas horas tão pregados estão.
            Resolvemos sair do parque a pé. Não conhecíamos o sítio onde estávamos, fomos andando pela zona pedonal. À nossa frente ergue-se uma colina verdejante onde pastam vacas, mais acima uma parede de rocha, de cor cinzenta, contrasta com o verde das pastagens mais abaixo. O rio ouve-se distintamente. Junto à entrada da primeira casa que encontramos dois espanhóis falam da maneira como vão ocupar o seu dia, distingo a intenção de irem a Llanes. Também nós lá queremos ir. Logo depois, passamos por uma loja de artigos regionais, com destaque para a sidra e para o queijo de Cabrales, há também muitos enchidos. A loja dispõe ainda de um merendero onde se servem tapas e pratos típicos asturianos. A zona de refeições fica sob as copas das árvores, as mesas são de plástico, mas tem muito bom aspecto. Cruzámos a ponte sobre o rio, as águas são absolutamente transparentes e o curso é rápido. À nossa direita outro restaurante, sidreria, vamos tomando nota. Finalmente, encontramos um supermercado, que anuncia fruta das Astúrias. Entramos e para nos estrearmos compramos um pouco de queijo de Cabrales, que pertence ao tipo queijo azul, parece ter mais bolor do que queijo… Procuramos sidra. A sidra era um dos produtos que nos trouxe às Astúrias. Vínhamos com a informação de que é o produto mais conhecido das Astúrias, verdadeiro emblema nacional e símbolo de identidade. Já tínhamos estado numa zona de sidra, na Normandia, mas não houve aí tempo para conhecer o produto e as suas variedades. Junto à secção das bebidas espirituosas encontramo-la. Havia a sidra natural, que não conhecemos, e outras duas variedades. Optámos pela marca El Gaetero. Parecia a mais próxima da que tínhamos encontrado na Normandia e mais semelhante à marca Somersby, de que todos gostamos muito. Conto isto para depois se perceber como era desmedida a nossa ignorância a respeito da sidra e da forma como deve ser bebida. Não estávamos iniciados nesses ritos tão antigos e importantes para degustar a sidra asturiana. Mas viajar é aprender…
            Almoço no parque, é sempre piquenique, é sempre agradável. Deixa sempre uma sensação de bem-estar. Durante o almoço, definimos como iríamos ocupar o resto do dia. Uma vez que o território das Astúrias tem cerca de 350 km de costa, optámos por uma ida à praia.
            O destino escolhido foi a praia de Torímbia, em Niembro, no concelho de Llanes, porque tínhamos lido que era uma praia idílica, porque estava relativamente perto. Saímos de carro em direção ao centro da vila, muito típica, com casas cuja altura não excedia os três andares, com uma boa oferta hoteleira e uma excelente oferta de cafeterias, restaurantes e bares. Os espanhóis têm mais o culto da vida social e de exterior do que os portugueses.
Atenta às indicações, verifiquei a existência e uma placa que indicava a direção da conhecida Ruta del Cares a 7 km. Tomei nota. Havia ainda a indicação do miradouro Naranjo de Bulnes, ou Pico Urriellu, o tal que é muito conhecido. Tomei nota.
A estrada segue até Poo de Cabrales e depois começa a subir vertiginosamente contornando os picos que envolvem o vale onde nos encontramos. As vistas voltam a ser surpreendentes e suspendemos a respiração, sem deixar de ter a boca aberta. Concluímos em conjunto que o lugar é mesmo bonito. Há zonas da estrada que são escavadas na rocha que fica suspensa sobre nós. Algumas vertentes têm formas caprichosas, noutras a erosão tem trabalhado tanto sobre a rocha, que as vertentes têm, na verdade, um aspecto instável. A informação do perigo de derrocada é quase contínua. Há passos em que aceleramos quase inconscientemente, porque não nos apetece estar por ali. As formações geológicas, a uma escala diferente, fazem-nos lembrar as serras de Aire e Candeeiros. Terei que investigar para confirmar esta hipótese. Por outro lado, há zonas que fazem lembrar os Alpes. Um dos países que gostaria de conhecer pela sua beleza natural é a Irlanda, a verdade é que a paisagem asturiana me faz lembrar as imagens que tenho visto da Irlanda, estas montanhas tão verdes, a proximidade cultural, as raízes celtas, até os trajes tradicionais e o uso da gaita de foles me transportam para lá.

Chegados a Niembro, estacionamos junto à estrada, porque as ruas da povoação parecem estreitas demais para comportar trânsito. Seguimos a pé as indicações de praia. O caminho, mesmo dentro da povoação é bastante íngreme. Passam alguns carros por nós e começamos a sentir que possivelmente deixámos o carro longe de mais. Atravessamos toda a povoação e estamos agora numa zona de colinas suaves e somos surpreendidos pela vista do mar à nossa direita. Estranhamente calmo, parece um vasto espelho de água, mais lago do que mar. Ao fundo avistamos a praia de Toranda e comentamos que a água deve ser muito fria por haver tão pouca gente na água, quando achamos que está tanto calor. Serpenteiam à nossa frente vários caminhos que atravessam estas colinas. Os campos têm um tom amarelado devido ao restolho, foram ceifados recentemente, os fardos de silagem ainda estão na terra. Subimos, subimos, subimos. Há carros estacionados dos dois lados da estrada, a decisão de ter  deixado o carro longe já parece mais acertada.
Quem sobe tem que descer e, assim que o começamos a fazer avistamos a praia de Torímbia. É uma praia em forma de concha, muito semelhante à forma da praia de S. Martinho, mas muito mais pequena. Está rodeada por esta colina que a aconchega e protege e ladeada por formações rochosas, a areia é muito branca. Do lugar onde nos encontramos, conseguimos perceber a transparência das águas, porque se vê o fundo de areia e as rochas. A caminhada é penosa, está muito calor, mas nada nos faria desistir agora.
Em Roma, sê romano, à nossa frente um casal atalha pelo meio da colina, apesar de ser uma descida íngreme, fazemos o mesmo. A descida termina junto a um restaurante que fica escondido num canto da praia, cuja esplanada está cheia de gente ruidosa e com ar bem disposto. Descemos um pouco mais e eis-nos chegados à praia.
Fomos imediatamente para a água, que estava ótima, contrariamente às nossas suposições. É macia, transparente e a ondulação é suave. Sem exageros, foi dos melhores banhos de mar da minha vida, talvez tenha sido da antecipação. Passamos o resto da tarde ali, creio que pelo meio houve mais umas sestas. Depois regressamos ao parque e o dia terminou sem história, mas com glória.

É preciso ainda fazer um parêntesis: a praia de Torímbia, talvez pela sua localização e difícil acesso é uma praia de naturistas, não só , mas também, pormenor que incomodou um pouco os membros mais jovens da expedição…

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar...

Dia um – 04-08-2014

A impaciência é já muita. Oficialmente de férias desde as 13:30, a decisão de partir impõe-se. Refrear a ansiedade foi fácil graças a um almoço, bastante agradável, com colegas de trabalho. Ainda um último café. Por fim, a chegada a casa, onde tudo anunciava a partida iminente: mochilas junto à porta, caixas com equipamento de campismo, algumas persianas já fechadas. Decidimos, por isso, ir ainda naquele dia, a ninguém parecia possível dormir em casa.
Afinal os últimos preparativos arrastaram-se mais do que queríamos. Houve ainda dois cortes de cabelo. O carro voltou a parecer muito mais pequeno do que a bagagem a transportar. Somos quatro, duas mulheres, vamos acampar e fazemo-lo com mais conforto do que despojamento. Há quem não abdique de dormir bem, há quem insista no secador de cabelo, há quem acredite que vai ser possível ler três livros em dez dias, há quem não dispense suporte tecnológico. Mas fomos bem sucedidos e a bagagem está arrumada. Tetris para adultos. A casa fechada, os cães tratados e entregues a um cuidador. O motor arranca, por fim cruzámos o portão para mais uns dias de aventura a quatro.
A primeira parte da viagem decorreu sem história. Desfilam perante os meus olhos as paisagens já familiares do caminho para Santarém, via A15. O meu país é bastante bonito e este ano, de verão tímido, como se vai ouvindo dizer, tem mantido a paisagem bastante verde e, em alguns pontos, quase exuberante. Não há vestígios nem cicatrizes de incêndios florestais. O vale de Santarém é fértil. Abundam olivais, terrenos de cultivo estendem-se até ao limite do horizonte em mosaicos que diferentes tonalidades cromáticas ajudam a demarcar. Renques de árvores traçam retas que se intersetam. É bonito e não me canso de olhar. É um dos prazeres que colho na vida: ir ao lado de um condutor, sem assumir sequer o papel de co-piloto, GPS gratias, e ir olhando a paisagem que desfila pelos vidros do carro. Há sempre algum pormenor que é novo, mais não seja pela altura do ano em que se viaja. Qualquer viagem corresponde a uma primeira vez, se a encararmos nesta perspetiva.
O dia começa a cair, o céu vai tomando as cores de um fim de tarde de verão, aquela tonalidade que fica entre um azul esbatido e um rosa também claro, quase um lilás suave, e digo em voz alta que já se nota que os dias vão ficando mais pequenos, o solstício de verão já foi há mais de quarenta dias, número bíblico, noto. Já “apanhamos” a A23, que sobe em direção a Vilar Formoso. Na zona de Abrantes, quando as placas indicam as saídas para Mouriscas, a estrada corre ao lado do Tejo. Numa curva, o leito do rio surge com um traçado bem definido, numa cor azul que parece artificial, um azul profundo e ao mesmo tempo quase elétrico. É bem um postal a guardar. Passo mais uma vez pelas indicações de Belver e, pela enésima vez, digo para mim mesma que tenho de lá ir e ainda não fui… Hei de repetir o mesmo quando for a indicação de Portas do Ródão. 2014 já dobrou dois terços e tantas promessas por cumprir e tantos sítios para conhecer para tão curta a vida.
Discutimos o que fazer quanto ao jantar daquele dia. Fica decidido que paramos em Castelo Branco, fazemos uma pausa antes de entrar em Espanha e decidirmos o tamanho das próximas etapas. Assim é, saída para Castelo Branco. A cidade recebe-nos com um parque urbano vasto, mas pouco arborizado. No cimo da colina revejo o perfil do Hotel Colina do Castelo, onde, há muitos anos, cometemos a loucura de ficar numa suite presidencial. Percebemos nessa altura o que quer dizer king size aplicado a uma cama de dormir. A suite é um pequeno apartamento. Tirámos medidas a olho e chegámos à conclusão de que seria maior do que o apartamento onde vivíamos na altura. Outros tempos, antes da crise e do medo do futuro. Voltemos à cidade e ao seu parque. Castelo Branco deve ser uma cidade segura, porque àquela hora – por volta das nove da noite – há bastante gente a fazer caminhadas, há crianças a brincar, há avós a acompanhar netos, e outros quadros de um fim de dia de verão. As ruas por onde circulámos são largas e os prédios modernos, sem serem horríveis. A cidade parece agradável. Virámos numa avenida à direita, um lugar livre, ficamos já aqui. Um Pingo Doce à nossa frente, será que há refeições no Sítio do costume? Entrei sem hesitações, a viver o meu pesadelo das viagens, uma bexiga que reclama constantemente atenção e vou percebendo que devo ser mãe de dois filhos com características dos camelos: nunca pedem para ir à casa de banho, sou sempre eu a dar o sinal de aflição. Quando saí, estavam os três à porta à minha espera, iam fechar, já estavam a descer a grade. Decidimos descer a pé a avenida, à espera de encontrar um sítio para jantar. Do lado direito um toldo da Delta Cafés. Serviam refeições. Era um espaço pequeno, sem grandes ambições, o dono era o único funcionário e fazia tudo: atendia à mesa e preparava os pratos. Não primava pela simpatia. Uma sopa, um bitoque e duas alheiras depois púnhamo-nos a caminho, tomei café para aguentara viagem durante a noite, que já tinha caído completamente. Fazemo-nos de novo à estrada.
Até Vilar Formoso o que fica na memória são quilómetros de autoestrada sem história, desceu uma espécie de silêncio e quase não há trânsito. Chegados à fronteira, paragem para mais um café. A partir daqui foi preciso negociar para a escolha da música, visto que deixámos de ter a rádio portuguesa. Os telemóveis fizeram automaticamente a mudança da hora, é uma da manhã. Ligámos o GPS, introduzimos o nosso destino. Arenas de Cabrales, nos limites dos Picos da Europa, Astúrias. O GPS indica que o melhor caminho a seguir é um direção a Santander, indicando a hora de chegada para as seis da manhã. Já só faltam cinco e é sempre autovia, sem portagens. A estrada rola, sem trânsito. A Francisca adormeceu lá atrás, nós os três mantemo-nos acordados. Vamos estando atentos às áreas de serviço abertas vinte e quatro horas, parece que o gasóleo não vai dar para a viagem toda. Começo a ficar preocupada com o sono dos outros e consigo convencê-los a pararmos para dormirmos um bocado no carro até ao amanhecer. Claro que a única que não consegue pregar os olhos sou eu, aflita outra vez para ir à casa de banho. O funcionário da área de serviço informa simpaticamente que servicios só às seis. Não posso mais. Peço para ir a conduzir e reinicio a viagem.
Pouco depois começo a aperceber-me de subtis mudanças na cor do céu, há um tom de cinza mais claro e apercebo-me que nos vamos aproximando de uma zona montanhosa, porque se avistam alguns picos contra o céu que ainda mal clareia. Atravessamos a cordilheira cantábrica ora dentro de um nevoeiro espesso e negro que nos devolve à noite, ora acima desse nevoeiro, avistando acima dele só os cumes dos picos mais altos. É uma imagem que me maravilha, parece uma paisagem fantasmagórica, mágica, irreal, àquela luz da madrugada. Quando saímos do nevoeiro, apercebemo-nos que o dia avança depressa e a luz é cada vez maior. Deparo-me com uma placa que informa da proximidade de Altamira e recordo o interesse que tenho em conhecer, acrescentei mentalmente à minha lista. Talvez dê para visitar. Viajar sem planos muito definidos tem essa vantagem, mudar de rumo se nos apetecer.
A paisagem já se distingue nitidamente. Rumamos em direção a Oeste, à nossa esquerda erguem-se colinas e montes bem verdes. Ainda estamos na Cantábria, avistamos os primeiros gados nos campos, já entrevimos o mar à nossa direita. Não há sono, nem cansaço, há curiosidade e pressa de chegar. Temos fome e paramos para tomar o pequeno-almoço. Lá atrás os miúdos respondem-nos, mais adormecidos que acordados, que não querem nada. Saímos e eles ficam a dormir no carro, tapados com o saco-cama. Duas tostadas e uma um café com leche. Confirma-se: o café é horrível, tomei nota para não voltar a tomar café com leite. Já as duas torradas davam e sobravam para um pequeno almoço a quatro, a empregada perguntou-nos com que queríamos o pão, só soubemos dizer mantequilla, ignorávamos quais as outras opções, se não fosse tímida, tinha perguntado. Só por curiosidade, cada tostada, foi servida com três pacotes de manteiga.
Pusemo-nos de novo a caminho e, em breve, cruzámos a placa que nos informava que nos encontrávamos no Principado das Astúrias. Era ainda cedo para irmos para o parque de campismo, ainda nem eram oito horas. Saímos da autovia e seguimos as indicações de praia. Seria bom ver o mar àquela hora do dia, com aquele ar lavado e pronto a usar que os dias têm ao amanhecer. A estrada segue ao lado da Ria de Tina Mayor, em Unquera. A Ria estabelece uma fronteira natural entre a comunidade autónoma da Cantábria e o Principado das Astúrias e é aí que desagua o rio Deva, um dos muitos rios que descem dos Picos da Europa. Seguimos por uma estrada que atravessa uma zona muito arborizada, por cima da Ria que uma maré baixa, baixíssima, deixou reduzida a algumas poças de água, há barcos de recreio ancorados na areia. De ambos os lados erguem-se encostas abruptas de rocha e vegetação, há verde por todo o lado, um verde muito escuro, uma vegetação exuberante, sinal de que a zona é húmida e chuvosa. Avançámos ainda por uma estrada de sentido único que indicava a zona de praia e um parque de estacionamento. Estacionámos num parque minúsculo empedrado e saímos para uma espécie de miradouro com varandim de madeira no cimo de uma falésia que dava para a praia. Tentámos não fazer barulho, porque havia três carros estacionados com todo o aspecto de pertencerem a quem faz campismo selvagem. Num deles, com um aspecto tão usado que eu duvidaria de fazer qualquer viagem com ele, dormia um jovem alemão, com os olhos tapados por uma máscara para que a luz do dia não o incomodasse. Os outros dois eram duas velhas pão-de-forma, cuja nacionalidade não pudemos identificar.
Abeirámo-nos do varandim e lá em baixo um mar de um verde quase escuro, desculpem o cliché, com águas da cor da esmeralda, calmíssimo, embatia suavemente na parede rochosa. As águas eram muito transparentes e distinguiam-se perfeitamente as rochas do fundo e a areia. Ali as formações rochosas fazem uma espécie de baía e, do nosso lado direito, talvez por ser maré baixa, o mar deixa a descoberto uma estreita faixa de areia que forma uma praia estranha, porque fica entre duas zonas distintas de ondulação. Àquela hora da manhã, tudo tinha um ar paradisíaco e aquela imagem ficou gravada na memória, talvez por ser a primeira impressão.
Os miúdos continuam a dormir. Voltamos a entrar no carro para rumarmos em direção a Arenas de Cabrales, procurando o parque que escolhemos: Naranjo de Bulnes, já nos Picos da Europa, cujos cumes já se avistam daqui. São quase nove horas, a receção já deve estar aberta. Seguimos a estrade de sentido único que nos fez regressar à autovia, voltámos a sair na mesma saída, mas desta vez seguindo as indicações de Arenas de Cabrales. A estrada que tomámos segue ao lado do Rio Deva, que vai descendo com um caudal e uma rapidez próprias de um rio de montanha. Depois de alguns quilómetros, começamos a penetrar no desfiladeiro cavado pelo Rio Cares, que é um afluente do Deva. O rio fica à nossa esquerda, mas esqueço-me dele num instante. Só tenho olhos para cima: para as paredes de rocha abrupta que envolvem a estrada. Escarpas quase a direito. Como uma imagem vale mais que mil palavras:


Esmagados pela paisagem, chegámos num instante ao parque. O parque Naranjo de Bulnes – já agora este nome é o de um dos picos mais famosos pela dificuldade em ser escalado e que tem um pouco mais de 2500 metros de altitude, mas hei de voltar a falar dele – fica mesmo à entrada de Arenas de Cabrales e divide-se pelos dois lados da estrada. Do lado direito, a zona do parque estende-se à beira do rio Cares. Dirijimo-nos à receção e senhor disse-nos para darmos uma volta pelo parque a pé, escolhermos o sítio que mais nos convinha e que depois voltássemos para indicarmos o número. Depois disso, poderíamos entrar com o carro e instalarmo-nos à nossa vontade.
Assim fizemos. O parque é muito, muito verde, fica mesmo no sopé de um dos picos. Estava composto em termos de ocupação, mas ainda havia muitos lugares disponíveis. Acabámos por escolher um quase à entrada, junto à zona de balneários e dos lava-louças. Talvez tenha sido uma escolha arriscada. O resto da semana o dirá. Segue-se a montagem da tenda e posterior instalação. Os miúdos vão mesmo ter que acordar…