Dia um – 04-08-2014
A impaciência é já muita. Oficialmente de férias desde as 13:30, a decisão de partir
impõe-se. Refrear a ansiedade foi fácil graças a um almoço, bastante agradável,
com colegas de trabalho. Ainda um último café. Por fim, a chegada a casa, onde
tudo anunciava a partida iminente: mochilas junto à porta, caixas com
equipamento de campismo, algumas persianas já fechadas. Decidimos, por isso, ir
ainda naquele dia, a ninguém parecia possível dormir em casa.
Afinal os
últimos preparativos arrastaram-se mais do que queríamos. Houve ainda dois
cortes de cabelo. O carro voltou a parecer muito mais pequeno do que a bagagem
a transportar. Somos quatro, duas mulheres, vamos acampar e fazemo-lo com mais
conforto do que despojamento. Há quem não abdique de dormir bem, há quem
insista no secador de cabelo, há quem acredite que vai ser possível ler três
livros em dez dias, há quem não dispense suporte tecnológico. Mas fomos bem
sucedidos e a bagagem está arrumada. Tetris para adultos. A casa fechada, os cães
tratados e entregues a um cuidador. O motor arranca, por fim cruzámos o portão
para mais uns dias de aventura a quatro.
A primeira
parte da viagem decorreu sem história. Desfilam perante os meus olhos as
paisagens já familiares do caminho para Santarém, via A15. O meu país é
bastante bonito e este ano, de verão tímido, como se vai ouvindo dizer, tem
mantido a paisagem bastante verde e, em alguns pontos, quase exuberante. Não há
vestígios nem cicatrizes de incêndios florestais. O vale de Santarém é fértil.
Abundam olivais, terrenos de cultivo estendem-se até ao limite do horizonte em
mosaicos que diferentes tonalidades cromáticas ajudam a demarcar. Renques de
árvores traçam retas que se intersetam. É bonito e não me canso de olhar. É um
dos prazeres que colho na vida: ir ao lado de um condutor, sem assumir sequer o
papel de co-piloto, GPS gratias, e ir
olhando a paisagem que desfila pelos vidros do carro. Há sempre algum pormenor
que é novo, mais não seja pela altura do ano em que se viaja. Qualquer viagem
corresponde a uma primeira vez, se a encararmos nesta perspetiva.
O dia começa a
cair, o céu vai tomando as cores de um fim de tarde de verão, aquela tonalidade
que fica entre um azul esbatido e um rosa também claro, quase um lilás suave, e
digo em voz alta que já se nota que os dias vão ficando mais pequenos, o
solstício de verão já foi há mais de quarenta dias, número bíblico, noto. Já
“apanhamos” a A23, que sobe em direção a Vilar Formoso. Na zona de Abrantes,
quando as placas indicam as saídas para Mouriscas, a estrada corre ao lado do
Tejo. Numa curva, o leito do rio surge com um traçado bem definido, numa cor
azul que parece artificial, um azul profundo e ao mesmo tempo quase elétrico. É
bem um postal a guardar. Passo mais uma vez pelas indicações de Belver e, pela
enésima vez, digo para mim mesma que tenho de lá ir e ainda não fui… Hei de
repetir o mesmo quando for a indicação de Portas do Ródão. 2014 já dobrou dois
terços e tantas promessas por cumprir e tantos sítios para conhecer para tão
curta a vida.
Discutimos o
que fazer quanto ao jantar daquele dia. Fica decidido que paramos em Castelo
Branco, fazemos uma pausa antes de entrar em Espanha e decidirmos o tamanho das
próximas etapas. Assim é, saída para Castelo Branco. A cidade recebe-nos com um
parque urbano vasto, mas pouco arborizado. No cimo da colina revejo o perfil do
Hotel Colina do Castelo, onde, há muitos anos, cometemos a loucura de ficar
numa suite presidencial. Percebemos nessa altura o que quer dizer king size aplicado a uma cama de dormir.
A suite é um pequeno apartamento. Tirámos medidas a olho e chegámos à conclusão
de que seria maior do que o apartamento onde vivíamos na altura. Outros tempos,
antes da crise e do medo do futuro. Voltemos à cidade e ao seu parque. Castelo
Branco deve ser uma cidade segura, porque àquela hora – por volta das nove da
noite – há bastante gente a fazer caminhadas, há crianças a brincar, há avós a
acompanhar netos, e outros quadros de um fim de dia de verão. As ruas por onde
circulámos são largas e os prédios modernos, sem serem horríveis. A cidade
parece agradável. Virámos numa avenida à direita, um lugar livre, ficamos já
aqui. Um Pingo Doce à nossa frente,
será que há refeições no Sítio do costume?
Entrei sem hesitações, a viver o meu pesadelo das viagens, uma bexiga que
reclama constantemente atenção e vou percebendo que devo ser mãe de dois filhos
com características dos camelos: nunca pedem para ir à casa de banho, sou
sempre eu a dar o sinal de aflição. Quando saí, estavam os três à porta à minha
espera, iam fechar, já estavam a descer a grade. Decidimos descer a pé a
avenida, à espera de encontrar um sítio para jantar. Do lado direito um toldo
da Delta Cafés. Serviam refeições.
Era um espaço pequeno, sem grandes ambições, o dono era o único funcionário e
fazia tudo: atendia à mesa e preparava os pratos. Não primava pela simpatia.
Uma sopa, um bitoque e duas alheiras depois púnhamo-nos a caminho, tomei café
para aguentara viagem durante a noite, que já tinha caído completamente.
Fazemo-nos de novo à estrada.
Até Vilar
Formoso o que fica na memória são quilómetros de autoestrada sem história,
desceu uma espécie de silêncio e quase não há trânsito. Chegados à fronteira,
paragem para mais um café. A partir daqui foi preciso negociar para a escolha
da música, visto que deixámos de ter a rádio portuguesa. Os telemóveis fizeram
automaticamente a mudança da hora, é uma da manhã. Ligámos o GPS, introduzimos
o nosso destino. Arenas de Cabrales, nos limites dos Picos da Europa, Astúrias.
O GPS indica que o melhor caminho a seguir é um direção a Santander, indicando
a hora de chegada para as seis da manhã. Já só faltam cinco e é sempre autovia,
sem portagens. A estrada rola, sem trânsito. A Francisca adormeceu lá atrás,
nós os três mantemo-nos acordados. Vamos estando atentos às áreas de serviço
abertas vinte e quatro horas, parece que o gasóleo não vai dar para a viagem
toda. Começo a ficar preocupada com o sono dos outros e consigo convencê-los a
pararmos para dormirmos um bocado no carro até ao amanhecer. Claro que a única
que não consegue pregar os olhos sou eu, aflita outra vez para ir à casa de
banho. O funcionário da área de serviço informa simpaticamente que servicios só às seis. Não posso mais.
Peço para ir a conduzir e reinicio a viagem.
Pouco depois
começo a aperceber-me de subtis mudanças na cor do céu, há um tom de cinza mais
claro e apercebo-me que nos vamos aproximando de uma zona montanhosa, porque se
avistam alguns picos contra o céu que ainda mal clareia. Atravessamos a
cordilheira cantábrica ora dentro de um nevoeiro espesso e negro que nos
devolve à noite, ora acima desse nevoeiro, avistando acima dele só os cumes dos
picos mais altos. É uma imagem que me maravilha, parece uma paisagem
fantasmagórica, mágica, irreal, àquela luz da madrugada. Quando saímos do
nevoeiro, apercebemo-nos que o dia avança depressa e a luz é cada vez maior.
Deparo-me com uma placa que informa da proximidade de Altamira e recordo o
interesse que tenho em conhecer, acrescentei mentalmente à minha lista. Talvez
dê para visitar. Viajar sem planos muito definidos tem essa vantagem, mudar de
rumo se nos apetecer.
A paisagem já
se distingue nitidamente. Rumamos em direção a Oeste, à nossa esquerda
erguem-se colinas e montes bem verdes. Ainda estamos na Cantábria, avistamos os
primeiros gados nos campos, já entrevimos o mar à nossa direita. Não há sono,
nem cansaço, há curiosidade e pressa de chegar. Temos fome e paramos para tomar
o pequeno-almoço. Lá atrás os miúdos respondem-nos, mais adormecidos que
acordados, que não querem nada. Saímos e eles ficam a dormir no carro, tapados
com o saco-cama. Duas tostadas e uma
um café com leche. Confirma-se: o
café é horrível, tomei nota para não voltar a tomar café com leite. Já as duas
torradas davam e sobravam para um pequeno almoço a quatro, a empregada
perguntou-nos com que queríamos o pão, só soubemos dizer mantequilla, ignorávamos quais as outras opções, se não fosse
tímida, tinha perguntado. Só por curiosidade, cada tostada, foi servida com três pacotes de manteiga.
Pusemo-nos de
novo a caminho e, em breve, cruzámos a placa que nos informava que nos
encontrávamos no Principado das Astúrias. Era ainda cedo para irmos para o
parque de campismo, ainda nem eram oito horas. Saímos da autovia e seguimos as
indicações de praia. Seria bom ver o mar àquela hora do dia, com aquele ar
lavado e pronto a usar que os dias têm ao amanhecer. A estrada segue ao lado da
Ria de Tina Mayor, em Unquera. A Ria estabelece uma fronteira natural entre a
comunidade autónoma da Cantábria e o Principado das Astúrias e é aí que desagua
o rio Deva, um dos muitos rios que descem dos Picos da Europa. Seguimos por uma
estrada que atravessa uma zona muito arborizada, por cima da Ria que uma maré
baixa, baixíssima, deixou reduzida a algumas poças de água, há barcos de recreio
ancorados na areia. De ambos os lados erguem-se encostas abruptas de rocha e
vegetação, há verde por todo o lado, um verde muito escuro, uma vegetação
exuberante, sinal de que a zona é húmida e chuvosa. Avançámos ainda por uma
estrada de sentido único que indicava a zona de praia e um parque de
estacionamento. Estacionámos num parque minúsculo empedrado e saímos para uma
espécie de miradouro com varandim de madeira no cimo de uma falésia que dava
para a praia. Tentámos não fazer barulho, porque havia três carros estacionados
com todo o aspecto de pertencerem a quem faz campismo selvagem. Num deles, com
um aspecto tão usado que eu duvidaria de fazer qualquer viagem com ele, dormia
um jovem alemão, com os olhos tapados por uma máscara para que a luz do dia não
o incomodasse. Os outros dois eram duas velhas pão-de-forma, cuja nacionalidade
não pudemos identificar.
Abeirámo-nos
do varandim e lá em baixo um mar de um verde quase escuro, desculpem o cliché,
com águas da cor da esmeralda, calmíssimo, embatia suavemente na parede
rochosa. As águas eram muito transparentes e distinguiam-se perfeitamente as
rochas do fundo e a areia. Ali as formações rochosas fazem uma espécie de baía
e, do nosso lado direito, talvez por ser maré baixa, o mar deixa a descoberto
uma estreita faixa de areia que forma uma praia estranha, porque fica entre
duas zonas distintas de ondulação. Àquela hora da manhã, tudo tinha um ar
paradisíaco e aquela imagem ficou gravada na memória, talvez por ser a primeira
impressão.
Os miúdos
continuam a dormir. Voltamos a entrar no carro para rumarmos em direção a
Arenas de Cabrales, procurando o parque que escolhemos: Naranjo de Bulnes, já
nos Picos da Europa, cujos cumes já se avistam daqui. São quase nove horas, a
receção já deve estar aberta. Seguimos a estrade de sentido único que nos fez
regressar à autovia, voltámos a sair na mesma saída, mas desta vez seguindo as
indicações de Arenas de Cabrales. A estrada que tomámos segue ao lado do Rio
Deva, que vai descendo com um caudal e uma rapidez próprias de um rio de
montanha. Depois de alguns quilómetros, começamos a penetrar no desfiladeiro
cavado pelo Rio Cares, que é um afluente do Deva. O rio fica à nossa esquerda,
mas esqueço-me dele num instante. Só tenho olhos para cima: para as paredes de
rocha abrupta que envolvem a estrada. Escarpas quase a direito. Como uma imagem
vale mais que mil palavras:
Esmagados pela
paisagem, chegámos num instante ao parque. O parque Naranjo de Bulnes – já agora
este nome é o de um dos picos mais famosos pela dificuldade em ser escalado e
que tem um pouco mais de 2500 metros de altitude, mas hei de voltar a falar
dele – fica mesmo à entrada de Arenas de Cabrales e divide-se pelos dois lados
da estrada. Do lado direito, a zona do parque estende-se à beira do rio Cares. Dirijimo-nos
à receção e senhor disse-nos para darmos uma volta pelo parque a pé,
escolhermos o sítio que mais nos convinha e que depois voltássemos para
indicarmos o número. Depois disso, poderíamos entrar com o carro e
instalarmo-nos à nossa vontade.
Assim fizemos.
O parque é muito, muito verde, fica mesmo no sopé de um dos picos. Estava
composto em termos de ocupação, mas ainda havia muitos lugares disponíveis. Acabámos
por escolher um quase à entrada, junto à zona de balneários e dos lava-louças. Talvez
tenha sido uma escolha arriscada. O resto da semana o dirá. Segue-se a montagem
da tenda e posterior instalação. Os miúdos vão mesmo ter que acordar…