quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A fotografia

A Fotografia


            Estava pouca gente na estação de comboio. Sentada num dos bancos, olhava em volta desinteressada. Tinha sido mais um dia de trabalho, sentia-se cansada e não se focava particularmente em nada. O seu olhar vogava como um beija-flor, pousando aqui e ali muito rapidamente. Ouviu ao longe o ruído metálico do comboio sobre os carris e ergueu-se, aproximou-se da linha amarela, sem a pisar, nem um centímetro mais, tinha aquele receio inconsciente. O comboio imobilizou-se e ouviu-se o ruído característico dos freios, as portas abriram-se como quem suspira alto e as pessoas começaram a sair – muitas, cansadas, incaracterísticas – de regresso a casa, também de um dia cansativo. Rostos impenetráveis passaram por ela, corpos apressados e tensos tocaram-na impercetivelmente. Mais um dia…
            Como viajava sempre em contracorrente, o comboio estava praticamente vazio. Escolheu um lugar junto à janela, como era da sua preferência. Ouviu-se o apito a avisar o fecho das portas e um vulto pardo esgueirou-se rapidamente para dentro da carruagem. Talvez por causa da pressa, sentou-se inesperadamente ao seu lado. Como estava distraída não o reconheceu logo, só reparou quando ele a cumprimentou. Sorriu com surpresa, conhecia-o. Eram colegas de trabalho, não íntimos, nem sequer muito próximos, mas tinham estabelecido os laços que duas pessoas bem-educadas mantêm por cortesia. Acenos delicados, algumas palavras de circunstância trocadas numa pausa, comentários superficiais sobre assuntos efémeros de que não conseguiria lembrar-se mesmo que fizesse um esforço. Saber-se junto a um conhecido incomodou-a como a chuva ao Alberto Caeiro, era como ter um pé dormente. Agora não poderia submergir como sempre fazia na viagem de regresso, agora seria obrigada a manter com ele uma atenção forçada para sustentar o aspecto da pessoa bem-educada que realmente era.

            Ele falava-lhe da surpresa de a encontrar ali. Era assim todos os dias? Morava para os lados da cidade? Em que zona? Era interessante que viajassem todos os dias na mesma direção, na mesma linha, e nunca se terem encontrado. Afinal o mundo talvez não fosse assim tão pequeno como se insistia em estar sempre a dizer. A voz dele era muito mais agradável do que já tinha alguma vez reparado, era até muito mais agradável do que lhe apetecia que fosse naquelas circunstâncias em que gostava de estar sozinha. Viu-se a sorrir com gosto. Ele reparou no livro que ela segurava, O amor nos tempos de cólera, disse que já o tinha lido, perguntou-lhe sobre as suas impressões de leitura, comentou aquela forma de amar feita de uma lealdade e de uma entrega inabaláveis que suportavam uma espera que durava até à velhice avançada para se concretizar, acrescentou que, apesar de o livro ser uma obra prima, aquele amor lhe parecia exacerbado, pouco credível, ficção. Riu-se e era um riso grave, surdo, profundo que a encantou. Mas o que era aquilo, agora dava-lhe para reparar no homem, para avaliar a sensação de calor tépido que a presença dele lhe ia imprimindo nos sentidos. Ele ia fazendo as despesas da conversa, agora ia tecendo comentários sobre a escrita de Gabriel Garcia Marquez. Tinham ambos lido os livros do autor do realismo fantástico. Deve ter sorrido inconscientemente, porque ele lhe perguntou de que se ria, se não tinha gostado de O general no seu labirinto. Apressou-se a desfazer o mal entendido, disse qualquer coisa que teve a certeza de ter sido bastante disparatada e sentiu-se a fazer má figura. Concentra-te, concentra-te, mantém a boa imagem, não ajas como a tola que não és.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (V)

A viagem de autocarro começou com um forte balanço, enquanto subíamos por uma estrada que não podia deixar de ser íngreme, por estas paragens é assim. Nos lugares ao lado do meu viaja um jovem casal que vem de fazer a mesma rota que nós. Facto surpreendente, trazem consigo um bebé, que, pelos meus cálculos, não deve ter mais de nove meses. No chão repousa uma mochila de o carregar às costas. O bebé está cansado e resmunga. Com o balançar do autocarro, acabamos por adormecer, o casal e o bebé também.
A viagem é longa, quando acordo, sem saber quanto tempo decorreu, sou surpreendida pelas vistas espantosas: vales verdejantes mais abaixo da estrada, que corre sempre, parece-me, num equilíbrio muito precário à beira destas escarpas profundas. Há pequenos bosques de pinheiros por onde repousam vacas indolentes. A tarde já vai avançada. O bebé começou a chorar de impaciência e cansaço. Se fosse eu, começava a afligir-me, o que havia de afligir ainda mais o bebé (por isso nunca me meti nestas aventuras com crianças muito pequenas, mas por aqui, as crianças não parecem ser obstáculo nenhum e é uma lição que aprendo: no pasa nada). A mãe espanhola limita-se a cantar-lhe uma canção de embalar numa voz que não posso deixar de achar muito doce e a menina volta a adormecer. Eu já não durmo.
Dou conta de que o percurso até Cangas de Onis se faz por uma garganta que só pode ser o famoso desfiladeiro de Los Beyos. A estrada é muito estreita, mesmo assim tem duas faixas. A cada curva mais fechada, ficamos com a impressão que o autocarro vai embater na parede oposta desta estreita passagem que a montanha permitiu. As paredes são abruptas – agora sei exatamente o significado desta palavra – ou seja, a pique, de rocha maciça, mas recortada de maneira caprichosa. Não consigo desprender os olhos, há momentos em que uma parede a direito me corta a respiração, entre o medo que o autocarro se roce por ela, cortando-se naquela lâmina, e de que se afaste correndo o risco de mergulhar no precipício, não consigo perceber o que me faz suspender a respiração. De vez em quando, cruzamos um rio numa ponte de que mal percebo os contornos. As cores variam entre o verde muito verde e todas as tonalidades de cinzento, ora quase branco, ora quase negro, da rocha dura que nos ladeia. Descubro mais tarde que a estrada corre ao lado do Rio Sella e que desce até Cangas de Onis desde a província de Leão, onde aliás ficava situada a aldeia de Caín.
Chegados a Cangas de Onís, tempo para mudar de autocarro, que finalmente nos há de transportar até Poncebos. No total, a viagem de regresso leva mais de três horas de autocarro, foi grande a volta que demos no dia de hoje. Em direção a Poncebos, a estrada não melhora. Há momentos em que aperto a mão do Tó com força, tenho mesmo medo. Como viajo do lado direito do autocarro, à janela, posso jurar que houve momentos em que me senti suspensa no vazio. Não havia berma e o motorista, na minha perspetiva, ia demasiado depressa. A ideia de um acidente não me sai da cabeça e só quero que esta viagem infernal chegue ao fim. Sei que admiro a paisagem com fascínio, mas o meu instinto de sobrevivência obriga-me a desejar pela segurança de paragens com cota mais baixa e com os pés assente na terra. A verdade é que nunca gostei de voar…
O troço até ao parque de estacionamento volta a devolver-nos às margens do rio Cares que, selvagem, continua a correr no seu leito estreito. Fechamos o ciclo já com saudades deste dia que nos colocou perante a esmagadora força da natureza e estamos gratos e reconhecidos e muito conscientes da nossa pequenez. Fica, sem dúvida, a vontade de voltar.

Regresso ao parque e jantar. Nova experiência com a Sidra Asturiana. Que desilusão!!! A sidra afamada das Astúrias sabe a uma água-pé deslavada e dizemos em voz alta a nossa perplexidade, estávamos convencidos de que a sidra ao natural devia ser um parente pobre. Estávamos, como havemos de ver, muito enganados e já não estava longe o momento da nossa conversão, que seria dali por dois dias.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (IV)

Depois de uma interupção, longa, volto à crónica de viagem. Não gosto de deixar coisas por terminar. Ainda estou na Ruta del Cares...


A parte final do percurso pela montanha revelou-nos gratas surpresas. Atravessámos o rio sobre pontes de ferro diversas vezes. Eram cada vez mais frequentes as passagens pelo interior da rocha, muito húmida, com poças de água pelo chão. A garganta por onde corre o rio foi estreitando cada vez mais. Tínhamos a ilusão de que, se estendêssemos as mãos, tocaríamos na parede rochosa do outro lado. Até que por fim, chegámos ao ponto em que a força do rio é travada por uma barragem alta, enquanto parte do seu curso é desviado pelo túnel que já referi. O ruído das águas é ensurdecer e nós percorremos os metros do túnel na rocha que se tornou a imagem de postal mais conhecida destas paragens. Ao cimo de uns degraus metálicos que sobem ao lado de outros por onde a água do rio se escapa em cascata, somos de novo surpreendidos por mais uma vista do vale por onde o rio corre mais livremente. O leito é mais largo, as pedras são maiores, as águas continuam a ser indómitas. O caminho segue à beira do rio, por um estradão. Renasce em nós uma espécie de esperança. Cruzámo-nos com dois rapazes que seguiam em sentido inverso a comer um gelado!! Afinal a civilização parece estar perto e eu já só consigo pensar no Calipo de limão que hei de comer. Os rapazes tinham o gelado quase intacto, logo a arca não pode estar longe.

Antes do paraíso, paramos a ler uma placa informativa que diz mais ou menos o seguinte: “Rota perigosa. Desprendimento e queda de pedras em todo o percurso. Caminho traçado sobre a rocha sem proteção. Tome especial cuidado. Proibido andar de bicicleta.” O aviso vinha perfeitamente a tempo, tínhamos acabado de fazer a tal rota perigosa. A verdade é que nunca senti o perigo, não sou aventureira, sou mais é inconsciente. Não penso muito antes de fazer as coisas. Sei, depois da dureza da rota, que valeu a pena, que a faria outra vez, que gostaria imenso de voltar. Foi, sem dúvida, das experiências que mais gostei.
Mais placas a informar que a senda não terminava ali. Se a memória não me engana, creio que ainda era possível seguir pela mesma rota durante cerca de vinte quilómetros. Está provado, aqui caminha-se a sério e, sem surpresa, vi muita gente a continuar. Espantada ainda, vi muita gente que me tinha ultrapassado de manhã a inverter caminho e a preparar-se para fazer todo o percurso de volta. Do nosso grupo, sou sem dúvida a que está mais quebrada. Não consigo sequer encarar a hipótese de ter que voltar e sobe-me pelo corpo o arrependimento de não ter comprado os bilhetes para o regresso em Poncebos…
Uma coisa de cada vez. Aprendi com os anos a não demonstrar aos outros as minhas apreensões. Agora vejo imensa gente sentada à beira do rio, também há gente deitada a dormir, há outros que se descalçaram e se encavalitaram nas pedras do rio deixando que a água lhes vá lavando dos pés o ardor e o cansaço da caminhada. Para já, é só nisso que penso. Descalço-me, vacilo sobre as pedras que me magoam, persisto e não desisto. Lá me arrumo de maneira pouco confortável, mas não haverá nada que me possa demover de sentir a frescura da água. É uma sensação indescritível, mas metade do prazer esvai-se perante a temperatura cortante da água: rio de montanha, água gelada, mas tão boa.
O passo seguinte é o gelado. Por entre as árvores avista-se o perfil de uma construção de madeira. Estamos perto. Não é que a dita construção é uma loja de recuerdos que vende gelados e são quatro calipos de limão. Pergunto ao rapaz que nos atende se ainda estamos longe de Caín e ele responde-me que faltam cerca de cinco minutos. Pergunto pelos autocarros – pequeno susto – diz-me que o último sai às quatro (são 15:45!). Alerta-me para a possibilidade de já não haver bilhetes – grande susto. De repente a possibilidade de, àquela hora e naquele estado, ter de fazer o caminho de volta parece bastante plausível. Penso na minha filha de 11 anos e, mentalmente dou-me uma grande repreensão.
Voltamos ao caminho. Nem cinco minutos decorreram antes de entrarmos nas ruas estreitas e parcas da aldeia de Caín. Desculpem, não me lembro de mais nada, senão de ver dois autocarros estacionados num pequeno largo, uma esplanada a que não consegui achar graça e a grandes letreiros a anunciar o número através do qual poderíamos chamar um táxi.
Um bocadinho à toa, alinhei na fila junto aos autocarros, fui percebendo que havia mais gente na mesma situação. Os motoristas perguntaram quem tinha já bilhetes. Eram muitos, porque seria? Separaram os grupos, de um lado os eleitos, do outro os condenados, teriam que separar o trigo do joio vendendo mais bilhetes. O autocarro enchia-se rapidamente, quando me parecia que já não faltariam mais do que seis lugares, consegui os nossos bilhetes. Estávamos salvos! A salvação nem sempre é simples nem barata. O motorista explicou-me (é preciso que se note que nestas coisas sou sempre eu que falo enquanto o resto do corpo da expedição assobia para o lado ou se faz descaradamente de morto) que o autocarro nos levaria até Cangas de Onis, que aí teríamos que mudar de autocarro para seguirmos até Poncebos, mas nem tudo era mau, o autocarro faria uma paragem no parque de estacionamento antes de Poncebos. Este percurso custou a módica quantia de 50 euros. Parece-me que a empresa Alsa  não deve ter problemas de solvência…
Claro que estas reflexões faço-as agora, algumas semanas depois. Na altura, só senti um doce alívio quando atirei o meu corpo cansado para os lugares que me destinaram. 








quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar (III)

Dia 3 – 06-08-2014

            Como não podia deixar de ser, a noite foi de trovoada. Creio que ainda não houve férias em que não apanhássemos pelo menos uma noite de trovoada. A experiência da trovoada em terras altas para pessoas meridionais como nós tem grande impacto. Se levarmos em conta a validade científica da contagem dos segundos que decorrem entre a visualização do relâmpago e o som da trovoada, tornou-se óbvio que a trovoada estava bem longe, mas o som dos trovões ecoava pelas gargantas e desfiladeiros e prolongava-se por muito tempo. Foi assim uma tempestade com ar épico. Mas a tenda aguentou-se bem e não houve danos materiais. Clima de montanha é assim, imprevisível e chuvoso.
Manhã gloriosa, ar lavado, nuvens no céu, mas sem grande aspecto de chuva. Dada a proximidade a que estávamos da Ruta del Cares (a 7 km) e ainda à nossa expectativa, que era grande, decidimos fazê-la neste dia. Assim, depois do pequeno-almoço, equipámo-nos com umas mochilas com comida e água e lá fomos. Seguimos de carro em direção a Poncebos. Mais uma estrada estreita de montanha à beira da garganta por onde serpenteia o Rio Cares. Li algures que é um dos rios mais selvagens dos Picos da Europa. O que me surpreendeu foi a como a noite anterior aumentou o seu caudal de forma visível a olho nu. Imagino isto no inverno e quando a neve derrete. A cerca de 2 km de Poncebos, há dois orientadores de trânsito, colocados junto a um parque de estacionamento enorme, que nos informam que os parques em Poncebos já estão cheios e que será melhor deixarmos já lai o carro. Também nos disseram que às onze passaria um autocarro que nos levaria até Poncebos. O entusiasmo é um grande combustível. Não quisemos esperar e fizemos essa distância a pé, mas não sozinhos. Começo a acreditar que a Ruta del Cares é mesmo bastante concorrida, há imensa gente a preparar-se para o mesmo que nós, mas temos que admitir que muito melhor equipados, quer com roupas, quer com equipamentos de apoio. Vou confirmando esta ideia de que os percursos pedestres são um desporto muito popular por aqui.
Cruzamos o rio na ponte de Poncebos, junto à central elétrica, onde é visível o momento em que parte do caudal do rio lhe é devolvido. Passo a explicar. A Ruta del Cares é um caminho cavado na montanha que acompanha o canal construído entre 1919 e 1922, desde a povoação leonesa de Caín até à vila de Pocebos, nas Astúrias, levando a àgua do Rio Cares por um canal cavado na montanha, ora a descoberto, ora correndo no seu interior, durante 12 Km. Era este o percurso que nos propúnhamos fazer.
Em Poncebos havia grandes cartazes a anunciar a oportunidade de comprar o bilhete de autocarro que nos permitiria regressar de Caín. Não quisemos comprar, nem nos quisemos informar, prova da nossa impreparação e de algum espírito aventureiro, que, alguns dias depois, me parece pura irresponsabilidade. Mas temos tido sempre sorte, é o que vale.
Assim demos com o início do percurso, cuja placa informativa nos dizia que duraria cerca de seis horas, nada de mais. Ali tinham início outros dois percursos, o da Reconquista, com uma duração de nove horas e um outro para o Refúgio de Cabrones, mais um Pico bem concorrido, este com uma duração de 5h45min. Definitivamente aqui caminha-se a sério.
Claro que o percurso começa logo a subir por um caminho pedregoso e bastante árido, que ao fim da primeira hora de caminho me deixou completamente sem fôlego. O sol da montanha brilha inclemente e lembro-me de um senhor em Cabrales nos ter dito que estava um bom dia para fazer a rota, espero que aquilo não fosse irónico.
As vistas começam desde logo a deslumbrar-nos. São as paredes rochosas que se erguem à esquerda e à direita, íngremes, caprichosas, verdadeiros tratados geológicos que não consigo interpretar completamente, ah, mas queria muito. Torturo o meu filho, que acabou o 11º ano da área de ciências, para me ir explicando algumas coisas, a que ele vai atendendo com alguma impaciência. Aqui vale mesmo a pena usar a máquina fotográfica. Vemos por cima de nós algumas cabras selvagens, ouvimos o piar bem característico das águias, ou outras aves de rapina, que a biologia também não é a minha especialidade. El alguns pontos, o ruído das águas, que não chegamos a conseguir ver, sobe até nós, afirmando o poder do rio que há milhares de anos amolece esta pedra dura.


















Quando se diz que este é um dos percursos mais concorridos é mesmo verdade. Avancei até a hipótese de que as praias das Astúrias são tão calmas, porque a maioria das pessoas está a fazer este percurso de montanha. Arriscaria até a comparar a Ruta com o paredão da Nazaré em Agosto. Havia jovens casais a carregar bebés em mochilas às costas, com um prático protetor para o sol. Havia gente corajosa que faz o percurso a correr. Havia pessoas bem mais velhas do que eu a caminhar animadamente e a ultrapassar-me com uma velocidade que fez com que nunca mais os visse. Havia pessoas em sentido ascendente e em sentido descendente. Cruzámo-nos com uma família completa: um casal, dois filhos, que não teriam mais do que cinco anos, e os avós, iam caminhando um pouco mais devagar do que a maioria das pessoas e animando as crianças com a aproximação de uma gruta, que é quando o percurso avança pelo interior da rocha. Não me lembro de todos os exemplos que me surpreenderam, mas eram diversos e diferenciados.
De vez em quando, o canal corria a céu aberto. Trepávamos para ver a água que deslizava rapidamente, a uma boa altura e transparente. Com o calor que estava, ainda bem que no canal se ia repetindo o aviso da proibição de tomar banho por se tratarem de águas rápidas, a tentação era muito grande. Em alguns pontos, a parede abria uma brecha mínima de onde jorrava um fio de água para o caminho e era ver-nos a aproveitar para nos molharmos um bocadinho.
Emocionante foi também o momento em que se assinalou que tínhamos saído das Astúrias e já estávamos em território leonês.

Fomos pontuando a caminhada com paragens, ora para apreciar o espetáculo natural esmagador que tínhamos perante os olhos, ora para comermos, ora para aproveitarmos umas breves tréguas de sombra, mas sempre fascinados e encantados, sim, e também cansados.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Fica o desejo de voltar (II)

Dia 2 - 05-08-2014
           
           
            A tenda está montada, quer isto dizer que estamos instalados. Os outros voltaram a deitar-se e continuam a dormir, eu sentei-me cá fora a ler: A viagem dos inocentes, de Mark Twain. Parece apropriado ler um relato de viagem quando se está a viajar. É uma leitura apelativa e, em alguns momentos, verdadeiramente divertida. À minha frente uma numerosa família ou grupo de viajantes holandeses toma o pequeno-almoço. Nunca houve parque de campismo em que me instalasse onde não houvesse holandeses. Tenho para mim que são o povo que mais faz campismo. Era inevitável, também o sono se abateu sobre mim. Fui dormir.
            Dormi pouco, porque os ruídos do parque me acordaram e consegui convencer o Tó a levantar-se também. Aos miúdos parece que nada os vai arrancar da cama nas próximas horas tão pregados estão.
            Resolvemos sair do parque a pé. Não conhecíamos o sítio onde estávamos, fomos andando pela zona pedonal. À nossa frente ergue-se uma colina verdejante onde pastam vacas, mais acima uma parede de rocha, de cor cinzenta, contrasta com o verde das pastagens mais abaixo. O rio ouve-se distintamente. Junto à entrada da primeira casa que encontramos dois espanhóis falam da maneira como vão ocupar o seu dia, distingo a intenção de irem a Llanes. Também nós lá queremos ir. Logo depois, passamos por uma loja de artigos regionais, com destaque para a sidra e para o queijo de Cabrales, há também muitos enchidos. A loja dispõe ainda de um merendero onde se servem tapas e pratos típicos asturianos. A zona de refeições fica sob as copas das árvores, as mesas são de plástico, mas tem muito bom aspecto. Cruzámos a ponte sobre o rio, as águas são absolutamente transparentes e o curso é rápido. À nossa direita outro restaurante, sidreria, vamos tomando nota. Finalmente, encontramos um supermercado, que anuncia fruta das Astúrias. Entramos e para nos estrearmos compramos um pouco de queijo de Cabrales, que pertence ao tipo queijo azul, parece ter mais bolor do que queijo… Procuramos sidra. A sidra era um dos produtos que nos trouxe às Astúrias. Vínhamos com a informação de que é o produto mais conhecido das Astúrias, verdadeiro emblema nacional e símbolo de identidade. Já tínhamos estado numa zona de sidra, na Normandia, mas não houve aí tempo para conhecer o produto e as suas variedades. Junto à secção das bebidas espirituosas encontramo-la. Havia a sidra natural, que não conhecemos, e outras duas variedades. Optámos pela marca El Gaetero. Parecia a mais próxima da que tínhamos encontrado na Normandia e mais semelhante à marca Somersby, de que todos gostamos muito. Conto isto para depois se perceber como era desmedida a nossa ignorância a respeito da sidra e da forma como deve ser bebida. Não estávamos iniciados nesses ritos tão antigos e importantes para degustar a sidra asturiana. Mas viajar é aprender…
            Almoço no parque, é sempre piquenique, é sempre agradável. Deixa sempre uma sensação de bem-estar. Durante o almoço, definimos como iríamos ocupar o resto do dia. Uma vez que o território das Astúrias tem cerca de 350 km de costa, optámos por uma ida à praia.
            O destino escolhido foi a praia de Torímbia, em Niembro, no concelho de Llanes, porque tínhamos lido que era uma praia idílica, porque estava relativamente perto. Saímos de carro em direção ao centro da vila, muito típica, com casas cuja altura não excedia os três andares, com uma boa oferta hoteleira e uma excelente oferta de cafeterias, restaurantes e bares. Os espanhóis têm mais o culto da vida social e de exterior do que os portugueses.
Atenta às indicações, verifiquei a existência e uma placa que indicava a direção da conhecida Ruta del Cares a 7 km. Tomei nota. Havia ainda a indicação do miradouro Naranjo de Bulnes, ou Pico Urriellu, o tal que é muito conhecido. Tomei nota.
A estrada segue até Poo de Cabrales e depois começa a subir vertiginosamente contornando os picos que envolvem o vale onde nos encontramos. As vistas voltam a ser surpreendentes e suspendemos a respiração, sem deixar de ter a boca aberta. Concluímos em conjunto que o lugar é mesmo bonito. Há zonas da estrada que são escavadas na rocha que fica suspensa sobre nós. Algumas vertentes têm formas caprichosas, noutras a erosão tem trabalhado tanto sobre a rocha, que as vertentes têm, na verdade, um aspecto instável. A informação do perigo de derrocada é quase contínua. Há passos em que aceleramos quase inconscientemente, porque não nos apetece estar por ali. As formações geológicas, a uma escala diferente, fazem-nos lembrar as serras de Aire e Candeeiros. Terei que investigar para confirmar esta hipótese. Por outro lado, há zonas que fazem lembrar os Alpes. Um dos países que gostaria de conhecer pela sua beleza natural é a Irlanda, a verdade é que a paisagem asturiana me faz lembrar as imagens que tenho visto da Irlanda, estas montanhas tão verdes, a proximidade cultural, as raízes celtas, até os trajes tradicionais e o uso da gaita de foles me transportam para lá.

Chegados a Niembro, estacionamos junto à estrada, porque as ruas da povoação parecem estreitas demais para comportar trânsito. Seguimos a pé as indicações de praia. O caminho, mesmo dentro da povoação é bastante íngreme. Passam alguns carros por nós e começamos a sentir que possivelmente deixámos o carro longe de mais. Atravessamos toda a povoação e estamos agora numa zona de colinas suaves e somos surpreendidos pela vista do mar à nossa direita. Estranhamente calmo, parece um vasto espelho de água, mais lago do que mar. Ao fundo avistamos a praia de Toranda e comentamos que a água deve ser muito fria por haver tão pouca gente na água, quando achamos que está tanto calor. Serpenteiam à nossa frente vários caminhos que atravessam estas colinas. Os campos têm um tom amarelado devido ao restolho, foram ceifados recentemente, os fardos de silagem ainda estão na terra. Subimos, subimos, subimos. Há carros estacionados dos dois lados da estrada, a decisão de ter  deixado o carro longe já parece mais acertada.
Quem sobe tem que descer e, assim que o começamos a fazer avistamos a praia de Torímbia. É uma praia em forma de concha, muito semelhante à forma da praia de S. Martinho, mas muito mais pequena. Está rodeada por esta colina que a aconchega e protege e ladeada por formações rochosas, a areia é muito branca. Do lugar onde nos encontramos, conseguimos perceber a transparência das águas, porque se vê o fundo de areia e as rochas. A caminhada é penosa, está muito calor, mas nada nos faria desistir agora.
Em Roma, sê romano, à nossa frente um casal atalha pelo meio da colina, apesar de ser uma descida íngreme, fazemos o mesmo. A descida termina junto a um restaurante que fica escondido num canto da praia, cuja esplanada está cheia de gente ruidosa e com ar bem disposto. Descemos um pouco mais e eis-nos chegados à praia.
Fomos imediatamente para a água, que estava ótima, contrariamente às nossas suposições. É macia, transparente e a ondulação é suave. Sem exageros, foi dos melhores banhos de mar da minha vida, talvez tenha sido da antecipação. Passamos o resto da tarde ali, creio que pelo meio houve mais umas sestas. Depois regressamos ao parque e o dia terminou sem história, mas com glória.

É preciso ainda fazer um parêntesis: a praia de Torímbia, talvez pela sua localização e difícil acesso é uma praia de naturistas, não só , mas também, pormenor que incomodou um pouco os membros mais jovens da expedição…

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar...

Dia um – 04-08-2014

A impaciência é já muita. Oficialmente de férias desde as 13:30, a decisão de partir impõe-se. Refrear a ansiedade foi fácil graças a um almoço, bastante agradável, com colegas de trabalho. Ainda um último café. Por fim, a chegada a casa, onde tudo anunciava a partida iminente: mochilas junto à porta, caixas com equipamento de campismo, algumas persianas já fechadas. Decidimos, por isso, ir ainda naquele dia, a ninguém parecia possível dormir em casa.
Afinal os últimos preparativos arrastaram-se mais do que queríamos. Houve ainda dois cortes de cabelo. O carro voltou a parecer muito mais pequeno do que a bagagem a transportar. Somos quatro, duas mulheres, vamos acampar e fazemo-lo com mais conforto do que despojamento. Há quem não abdique de dormir bem, há quem insista no secador de cabelo, há quem acredite que vai ser possível ler três livros em dez dias, há quem não dispense suporte tecnológico. Mas fomos bem sucedidos e a bagagem está arrumada. Tetris para adultos. A casa fechada, os cães tratados e entregues a um cuidador. O motor arranca, por fim cruzámos o portão para mais uns dias de aventura a quatro.
A primeira parte da viagem decorreu sem história. Desfilam perante os meus olhos as paisagens já familiares do caminho para Santarém, via A15. O meu país é bastante bonito e este ano, de verão tímido, como se vai ouvindo dizer, tem mantido a paisagem bastante verde e, em alguns pontos, quase exuberante. Não há vestígios nem cicatrizes de incêndios florestais. O vale de Santarém é fértil. Abundam olivais, terrenos de cultivo estendem-se até ao limite do horizonte em mosaicos que diferentes tonalidades cromáticas ajudam a demarcar. Renques de árvores traçam retas que se intersetam. É bonito e não me canso de olhar. É um dos prazeres que colho na vida: ir ao lado de um condutor, sem assumir sequer o papel de co-piloto, GPS gratias, e ir olhando a paisagem que desfila pelos vidros do carro. Há sempre algum pormenor que é novo, mais não seja pela altura do ano em que se viaja. Qualquer viagem corresponde a uma primeira vez, se a encararmos nesta perspetiva.
O dia começa a cair, o céu vai tomando as cores de um fim de tarde de verão, aquela tonalidade que fica entre um azul esbatido e um rosa também claro, quase um lilás suave, e digo em voz alta que já se nota que os dias vão ficando mais pequenos, o solstício de verão já foi há mais de quarenta dias, número bíblico, noto. Já “apanhamos” a A23, que sobe em direção a Vilar Formoso. Na zona de Abrantes, quando as placas indicam as saídas para Mouriscas, a estrada corre ao lado do Tejo. Numa curva, o leito do rio surge com um traçado bem definido, numa cor azul que parece artificial, um azul profundo e ao mesmo tempo quase elétrico. É bem um postal a guardar. Passo mais uma vez pelas indicações de Belver e, pela enésima vez, digo para mim mesma que tenho de lá ir e ainda não fui… Hei de repetir o mesmo quando for a indicação de Portas do Ródão. 2014 já dobrou dois terços e tantas promessas por cumprir e tantos sítios para conhecer para tão curta a vida.
Discutimos o que fazer quanto ao jantar daquele dia. Fica decidido que paramos em Castelo Branco, fazemos uma pausa antes de entrar em Espanha e decidirmos o tamanho das próximas etapas. Assim é, saída para Castelo Branco. A cidade recebe-nos com um parque urbano vasto, mas pouco arborizado. No cimo da colina revejo o perfil do Hotel Colina do Castelo, onde, há muitos anos, cometemos a loucura de ficar numa suite presidencial. Percebemos nessa altura o que quer dizer king size aplicado a uma cama de dormir. A suite é um pequeno apartamento. Tirámos medidas a olho e chegámos à conclusão de que seria maior do que o apartamento onde vivíamos na altura. Outros tempos, antes da crise e do medo do futuro. Voltemos à cidade e ao seu parque. Castelo Branco deve ser uma cidade segura, porque àquela hora – por volta das nove da noite – há bastante gente a fazer caminhadas, há crianças a brincar, há avós a acompanhar netos, e outros quadros de um fim de dia de verão. As ruas por onde circulámos são largas e os prédios modernos, sem serem horríveis. A cidade parece agradável. Virámos numa avenida à direita, um lugar livre, ficamos já aqui. Um Pingo Doce à nossa frente, será que há refeições no Sítio do costume? Entrei sem hesitações, a viver o meu pesadelo das viagens, uma bexiga que reclama constantemente atenção e vou percebendo que devo ser mãe de dois filhos com características dos camelos: nunca pedem para ir à casa de banho, sou sempre eu a dar o sinal de aflição. Quando saí, estavam os três à porta à minha espera, iam fechar, já estavam a descer a grade. Decidimos descer a pé a avenida, à espera de encontrar um sítio para jantar. Do lado direito um toldo da Delta Cafés. Serviam refeições. Era um espaço pequeno, sem grandes ambições, o dono era o único funcionário e fazia tudo: atendia à mesa e preparava os pratos. Não primava pela simpatia. Uma sopa, um bitoque e duas alheiras depois púnhamo-nos a caminho, tomei café para aguentara viagem durante a noite, que já tinha caído completamente. Fazemo-nos de novo à estrada.
Até Vilar Formoso o que fica na memória são quilómetros de autoestrada sem história, desceu uma espécie de silêncio e quase não há trânsito. Chegados à fronteira, paragem para mais um café. A partir daqui foi preciso negociar para a escolha da música, visto que deixámos de ter a rádio portuguesa. Os telemóveis fizeram automaticamente a mudança da hora, é uma da manhã. Ligámos o GPS, introduzimos o nosso destino. Arenas de Cabrales, nos limites dos Picos da Europa, Astúrias. O GPS indica que o melhor caminho a seguir é um direção a Santander, indicando a hora de chegada para as seis da manhã. Já só faltam cinco e é sempre autovia, sem portagens. A estrada rola, sem trânsito. A Francisca adormeceu lá atrás, nós os três mantemo-nos acordados. Vamos estando atentos às áreas de serviço abertas vinte e quatro horas, parece que o gasóleo não vai dar para a viagem toda. Começo a ficar preocupada com o sono dos outros e consigo convencê-los a pararmos para dormirmos um bocado no carro até ao amanhecer. Claro que a única que não consegue pregar os olhos sou eu, aflita outra vez para ir à casa de banho. O funcionário da área de serviço informa simpaticamente que servicios só às seis. Não posso mais. Peço para ir a conduzir e reinicio a viagem.
Pouco depois começo a aperceber-me de subtis mudanças na cor do céu, há um tom de cinza mais claro e apercebo-me que nos vamos aproximando de uma zona montanhosa, porque se avistam alguns picos contra o céu que ainda mal clareia. Atravessamos a cordilheira cantábrica ora dentro de um nevoeiro espesso e negro que nos devolve à noite, ora acima desse nevoeiro, avistando acima dele só os cumes dos picos mais altos. É uma imagem que me maravilha, parece uma paisagem fantasmagórica, mágica, irreal, àquela luz da madrugada. Quando saímos do nevoeiro, apercebemo-nos que o dia avança depressa e a luz é cada vez maior. Deparo-me com uma placa que informa da proximidade de Altamira e recordo o interesse que tenho em conhecer, acrescentei mentalmente à minha lista. Talvez dê para visitar. Viajar sem planos muito definidos tem essa vantagem, mudar de rumo se nos apetecer.
A paisagem já se distingue nitidamente. Rumamos em direção a Oeste, à nossa esquerda erguem-se colinas e montes bem verdes. Ainda estamos na Cantábria, avistamos os primeiros gados nos campos, já entrevimos o mar à nossa direita. Não há sono, nem cansaço, há curiosidade e pressa de chegar. Temos fome e paramos para tomar o pequeno-almoço. Lá atrás os miúdos respondem-nos, mais adormecidos que acordados, que não querem nada. Saímos e eles ficam a dormir no carro, tapados com o saco-cama. Duas tostadas e uma um café com leche. Confirma-se: o café é horrível, tomei nota para não voltar a tomar café com leite. Já as duas torradas davam e sobravam para um pequeno almoço a quatro, a empregada perguntou-nos com que queríamos o pão, só soubemos dizer mantequilla, ignorávamos quais as outras opções, se não fosse tímida, tinha perguntado. Só por curiosidade, cada tostada, foi servida com três pacotes de manteiga.
Pusemo-nos de novo a caminho e, em breve, cruzámos a placa que nos informava que nos encontrávamos no Principado das Astúrias. Era ainda cedo para irmos para o parque de campismo, ainda nem eram oito horas. Saímos da autovia e seguimos as indicações de praia. Seria bom ver o mar àquela hora do dia, com aquele ar lavado e pronto a usar que os dias têm ao amanhecer. A estrada segue ao lado da Ria de Tina Mayor, em Unquera. A Ria estabelece uma fronteira natural entre a comunidade autónoma da Cantábria e o Principado das Astúrias e é aí que desagua o rio Deva, um dos muitos rios que descem dos Picos da Europa. Seguimos por uma estrada que atravessa uma zona muito arborizada, por cima da Ria que uma maré baixa, baixíssima, deixou reduzida a algumas poças de água, há barcos de recreio ancorados na areia. De ambos os lados erguem-se encostas abruptas de rocha e vegetação, há verde por todo o lado, um verde muito escuro, uma vegetação exuberante, sinal de que a zona é húmida e chuvosa. Avançámos ainda por uma estrada de sentido único que indicava a zona de praia e um parque de estacionamento. Estacionámos num parque minúsculo empedrado e saímos para uma espécie de miradouro com varandim de madeira no cimo de uma falésia que dava para a praia. Tentámos não fazer barulho, porque havia três carros estacionados com todo o aspecto de pertencerem a quem faz campismo selvagem. Num deles, com um aspecto tão usado que eu duvidaria de fazer qualquer viagem com ele, dormia um jovem alemão, com os olhos tapados por uma máscara para que a luz do dia não o incomodasse. Os outros dois eram duas velhas pão-de-forma, cuja nacionalidade não pudemos identificar.
Abeirámo-nos do varandim e lá em baixo um mar de um verde quase escuro, desculpem o cliché, com águas da cor da esmeralda, calmíssimo, embatia suavemente na parede rochosa. As águas eram muito transparentes e distinguiam-se perfeitamente as rochas do fundo e a areia. Ali as formações rochosas fazem uma espécie de baía e, do nosso lado direito, talvez por ser maré baixa, o mar deixa a descoberto uma estreita faixa de areia que forma uma praia estranha, porque fica entre duas zonas distintas de ondulação. Àquela hora da manhã, tudo tinha um ar paradisíaco e aquela imagem ficou gravada na memória, talvez por ser a primeira impressão.
Os miúdos continuam a dormir. Voltamos a entrar no carro para rumarmos em direção a Arenas de Cabrales, procurando o parque que escolhemos: Naranjo de Bulnes, já nos Picos da Europa, cujos cumes já se avistam daqui. São quase nove horas, a receção já deve estar aberta. Seguimos a estrade de sentido único que nos fez regressar à autovia, voltámos a sair na mesma saída, mas desta vez seguindo as indicações de Arenas de Cabrales. A estrada que tomámos segue ao lado do Rio Deva, que vai descendo com um caudal e uma rapidez próprias de um rio de montanha. Depois de alguns quilómetros, começamos a penetrar no desfiladeiro cavado pelo Rio Cares, que é um afluente do Deva. O rio fica à nossa esquerda, mas esqueço-me dele num instante. Só tenho olhos para cima: para as paredes de rocha abrupta que envolvem a estrada. Escarpas quase a direito. Como uma imagem vale mais que mil palavras:


Esmagados pela paisagem, chegámos num instante ao parque. O parque Naranjo de Bulnes – já agora este nome é o de um dos picos mais famosos pela dificuldade em ser escalado e que tem um pouco mais de 2500 metros de altitude, mas hei de voltar a falar dele – fica mesmo à entrada de Arenas de Cabrales e divide-se pelos dois lados da estrada. Do lado direito, a zona do parque estende-se à beira do rio Cares. Dirijimo-nos à receção e senhor disse-nos para darmos uma volta pelo parque a pé, escolhermos o sítio que mais nos convinha e que depois voltássemos para indicarmos o número. Depois disso, poderíamos entrar com o carro e instalarmo-nos à nossa vontade.
Assim fizemos. O parque é muito, muito verde, fica mesmo no sopé de um dos picos. Estava composto em termos de ocupação, mas ainda havia muitos lugares disponíveis. Acabámos por escolher um quase à entrada, junto à zona de balneários e dos lava-louças. Talvez tenha sido uma escolha arriscada. O resto da semana o dirá. Segue-se a montagem da tenda e posterior instalação. Os miúdos vão mesmo ter que acordar…






               

terça-feira, 1 de julho de 2014

Uma história feliz (III)

      Assim, quando ele, naquela noite a acompanhou a casa, ia determinada a pôr um fim naquela situação que se arrastava e a ia arrastando para o que já lhe parecia a verdadeira infelicidade. Com a sua delicadeza - que a delicadeza não se despe como uma roupa amarrotada - foi-o preparando para o que ali vinha. começou por dizer que precisavam de falar.Os alarmes dele não soaram, não estranharam e ele disse mais uma piada. Ela cerrou os dentes. Depois começou por explicar que não se sentia bem naquela situação e ele interrompeu-a e perguntou-lhe qual situação. Ela apertou as mãos uma na outra para não se desviar do plano que tinha traçado. Disse-lhe então que os sentimentos dela não eram tão fortes como tinha suposto, que o princípio de relação não a estava a deixar satisfeita. Pelo menos parecia-lhe que era isso que estava a dizer, mas ele ainda não estava a querer entender. Então ela impacientou-se e disse que queria acabar com tudo. Ele estacou no meio da rua e a luz dos candeeiros deixou ver que ele lhe fazia uma pergunta tão muda quanto perplexa. O facto de ele não ter nada para dizer naquele momento, deixou-lhe espaço para ela dizer o que tinha a dizer. Foi delicada, foi querida, conseguiu explicar o que sentia, sem nunca lhe falar do incómodo que era ele falar alto, ser o bobo de serviço ao grupo, sem referir a sua estridência e a sua exuberância. A expressão do rosto passou do espanto a um rito magoado e voltou ao espanto e depois ficou indefinida, mas era triste. 
      Ela olhava-o agora espantada. Ele estava tão calmo, porque é que não podia ser sempre assim? Pôs-lhe a mão no braço, mas ele afastou-lha um bocadinho mais rápido do que era de esperar ao mesmo tempo que dizia não. Levantou os olhos, olhou-a bem e disse com muita calma que estava bem, se era assim que ela queria, que estava bem e afastou-se. Ela ficou imóvel, mas qualquer coisa dentro dela lhe gritou que não podia ser assim, não podiam afastar-se com um simples está bem, como se ela lhe tivesse pedido para ele lhe trazer qualquer coisa do supermercado. Correu um bocadinho e chamou-o, mas ele não parou, nem se voltou. Limitou-se a levantar o braço direito, a deixá-lo erguido no ar por uns segundos e quando ela repetiu o seu nome, acenou-lhe com a mão, sem se voltar. Ela não sabia, não podia saber que as lágrimas lhe corriam pela cara, que a rejeição que ele sentia não podia ser vista por ela, que se sentia amarfanhado como uma folha de papel. Ele foi para casa e não dormiu. Ela foi para casa, primeiro não dormiu, mas depois um alívio culpado tomou conta dela, porque vinha da dor de alguém, e acabou por adormecer e dormir até muito bem. Não sabia se a sua seria uma história feliz, mas pelo menos garantira que não seria mais uma história infeliz.
      

domingo, 15 de junho de 2014

Uma História feliz (II)

     Nos jantares seguintes, quando o grupo se entregava aos jogos de salão de que tanto gostavam, ele - é que ele estava tão feliz - não se continha dentro dele, transbordava de otimismo e de alegria, dizia piadas de que todos se riam muito e ele ria mais do que todos da sua própria graça, enquanto olhava para ela pelo canto do olho. Ela tinha sempre um sobressalto, como quem se assusta com a presença de alguém ao seu lado sem estar à espera. Naqueles momentos, quase embaraçosos, ela baixava os olhos e ria sem abrir os lábios, limitava-se a desenhar a linha do sorriso nos seus lábios, sem nunca participar nas gargalhadas altas à sua volta. Dentro de si agitava-se um incómodo, mas não poderia pedir-lhe que ele serenasse, que ele regressasse à sua medida. A pergunta que até ali ele colocava discretamente: "repararam que eu cheguei?", passou a ser um grito que impunha a sua presença mesmo àqueles que estavam distraídos: "estou aqui e transbordo de felicidade!". Ele tornara-se mais assertivo, mais incisivo. Que coisa! E agora, onde ia ela encontrar as palavras certas para lhe dizer que ele era como um rio que galgara as margens e que era preciso que recuasse e que voltasse a estreitar-se no seu leito? Mas as palavras não vinham e outra noite de amigos se passava assim, ele mais exuberante, eufórico, mas menos estridente do que ela pensava, ela cada vez mais apagada, incomodada, sentindo quase vergonha por ele. Os amigos não repararam, gostavam da alegria dele e puxavam pela discrição dela. Nem sequer chegaram a ponto de se perguntarem o que se passava com eles. Atribuíram todas as diferenças à maior empatia que se ia cimentando no grupo, as noites que passavam juntos eram cada vez mais divertidas, nunca se falava de coisas muito sérias, tudo eram risos que se perdiam no ar.
    Naqueles dias, ela começou a andar mais atormentada e passou a fugir um bocadinho dele. Deu as desculpas oportunas, muito trabalho, cansaço, dor de cabeça, mais trabalho e  mais cansaço e já não havia como fugir mais. Estiveram juntos, só os dois, quando não pôde fugir mais sem que parecesse rude, e aquela ânsia acalmou um pouco, ele não lhe tinha parecido tão agitado, acompanhou-a a casa, conversaram superficialmente de assuntos que não seria capaz de precisar e tinha sido agradável. Mas depois de ele ter ido embora, ficou-lhe no ventre um constrangimento que a fazia infeliz, um nervoso miudinho e, em espanto, descobriu nela que o rejeitava, que ele não era aquilo que ela procurava, que não queria e não podia mais. Teria que lho dizer, teria que ser honesta com ele e com ela, mas como? como feri-lo quando ele se mostrava tão bem junto dela, quando sentia que ele a queria tanto, lhe queria muitíssimo? Logo ela que evitava por todos os meios ferir quem quer que fosse. Como é que se via naquela situação?  
     No jantar da semana seguinte, os acontecimentos precipitaram-se. a sua agonia tornou-se insuportável, o pathos dele era inevitável, a tragédia desenhava-se, sem catarse. Naquela noite, ele estava realmente efusivo. A sua voz sobrepunha-se a todo as as outras. Parecia que ninguém terminava uma frase sem que ele interrompesse e com umas observações que deixavam todos os outros uns instantes boquiabertos, antes de se rirem com satisfação. Tinha que ser justa ninguém parecia aborrecido, não surpreendia nenhuma troca de olhares suspeita. Ninguém parecia chocado com as coisas que ele ia dizendo. De repente, a noite de amigos tinha-se tornado um monólogo. Era só ele que falava, a resposta àquilo que dizia eram as sonoras gargalhadas que os cercavam como uma nuvem de fumo. A primavera ia quente, as janelas estavam abertas e as pessoas que passassem na rua poderiam testemunhar aqueles momentos de diversão. Enquanto se ia rindo sem abrir os lábios - era muito raro que soltasse uma gargalhada - deu por si a comparar aquele jantar a uma encenação burlesca, e já não conseguia deixar de o ver como um bobo - sim, estava a ser cruel, mas a semelhança imprimira-se no seu espírito e não conseguia esbatê-la. One man show, a sit down comedy em lugar da stand up comedy. Não, não,ela não poderia ser a mulher de um ator, ainda que de um ator amador, ainda que de um homem agradável com especiais dotes histriónicos. Isto decidiu-a. Era demais para ela. Tinha que pôr fim àquela história feliz que só ele estava a viver. 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma história feliz (I)

      Ele era um homem bonito. Tinha uns olhos grandes e escuros.O rosto era perfeito e atraía a atenção. A pele era morena e saudável, com aquele ar de exposição ao sol. Não, não era requeimada, ou curtida, como a pele dos homens do mar, nem dos homens da terra. Ele era bonito e sabia disso. Sem que fosse ostensivamente, cada vez que entrava numa sala, assumia um bocadinho uma atitude interrogativa que era dirigida aos circunstantes, uma pergunta muda: "viram que eu entrei?". Era uma pergunta retórica. As pessoas que estão vêem sempre as pessoas que entram, podem é não as ver como elas gostariam de ser vistas. Era solteiro, ninguém sabia, mas ele procurava uma mulher, soube-se depois que a procura incessantemente.
      Ela era nova no sítio. Não era bonita nem feia. Era simpática, afável, delicada e muito correta nas suas maneiras. É preciso dizer outra vez: não era especialmente bonita, porque os casos extraordinários não acontecem só às pessoas extraordinárias. Acontecem todos os dias às pessoas comuns. Tinha vindo trabalhar para ali há pouco tempo e todos dias evitava responder à pergunta (muda e retórica) que ele continuava a colocar com o seu corpo cada vez que entrava numa sala. Mas registou, sem querer, que ele tinha uma figura agradável. 
     Eles conheceram-se. Partilhavam um grupo de amigos que jantavam todas as semanas. Era um grupo divertido, jovem, inconsequente, de pessoas que se encontravam ali de passagem, que travaram conhecimento, descobriram afinidades e cheios de vida começaram a partilhá-la muito naturalmente uns com os outros. Ele e ela conviviam com eles, diluídos naquela mole restrita. Eram dias felizes, eram bons momentos e todos se acreditavam até amigos.
     Um dia, ele que procurava uma mulher, oh, sim, ele queria muito encontrar com quem partilhar a sua vida ainda jovem, ainda bonito, mas já pronto para... Não havia naquele desejo cinismo, nem oportunismo. Não havia calculismo, não havia fingimento. Ele estava pronto para se dar e crente de que valia a pena que alguém o recebesse. Naqueles jantares foi reparando nela. Como naquelas piadas que nos lembram que não devemos pôr os nossos desejos demasiado acima das possibilidades de os realizarmos, ele sabia que ela poderia ser sua, porque não era a mais bonita do grupo, nem a mais divertida, nem a mais atraente. Ela não era ideal, graças a Deus, porque o Ideal fica muito longe e as nossas mãos nem sempre o alcançam. Ela era só a mais delicada, a mais educada, poderíamos dizer, tinha uma graça que era feita da sua verticalidade, assertividade e retidão, sem ser feia, nem gorda, nem ter marcas no rosto. Tudo nela era equilibrado. E ele fixou-se nela e quis tê-la e que ela o tivesse. Era genuíno e sincero.
    Um dia, falou-lhe dos seus sentimentos. Tocou-lhe nas mãos. O momento foi propiciatório. Estava escuro e frio e os corpos quentes (mas a perder temperatura) eram atraídos para outros corpos quentes, tentando juntos manter a temperatura. Era bom enlaçar as mãos, que estavam quentes. Era bom abraçar um corpo que estava quente. Era bom ouvir palavras sentidas. Era bom dizer que sim, sem se saber ainda bem se era sim o que se queria dizer. Estava-se bem e, secretamente, quase sem o dizerem a si mesmos, eles deram-se um ao outro e sentiram-se felizes com isso.
     Mas não queriam perturbar o grupo, constrangê-los com um amor que nascia, incomodá-los com mãos enlaçadas e intimidades, por isso mantiveram-no em segredo. E podia ser uma história feliz...



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

365 dias depois (Fim)

Essa foi a ironia com a qual não contei. Na verdade, acabei por ser salva. A queda foi amortecida pelas piteiras, pelos arbustos lenhosos que crescem nesta encosta quase a pique. Fiquei ali, como uma lâmpada cuja ligação elétrica tem intermitências. Oscilando entre a consciência e a inconsciência. Soube depois do meu resgate, de um salvamento impressionante de dedicação e resistência ao perigo. Soube depois de procedimentos médicos que evitaram que perecesse. Soube depois do longo tempo em que permaneci num coma induzido. Soube depois que não ter morrido significava uma nova vida, podia recomeçar, podia tentar. Soube muito depois que não iria conseguir. Debati-me durante meses com uma sensação de irrealidade, como se tivesse ficado lá e de lá pudesse ver o que foi acontecendo comigo. Não fui capaz de enfrentar a astenia da minha vontade. O tempo passou a arrastar-se demasiado penosamente e todos dias era tentada pelo pensamento de lamentar que tudo não tivesse terminado ali. Dei-me conta do esforço dos outros à minha volta, dos olhares discretos, das meias palavras. O cuidado que punham na maneira como lidavam comigo era palpável, colava-se-me à pele como suor de verão. Cansavam-me as tentativas dos outros para que eu percebesse a sorte que tinha tido (sorte, a palavra é de uma ironia atroz), onde eles viam sorte, eu via um lamentável erro, uma brincadeira de alguém com um sentido de humor muito negro. Eu não queria viver. Eu tinha morrido para mim naquele dia. O que restava eram coisas que fazem um corpo: pele, unhas, cabelo, órgãos a funcionar, a cumprirem uma função biológica tecida na memória ancestral que faz com não consigamos deixar de respirar. Eu já não estava ali. Desde aquele dia malogrado eu estive sempre aqui, perplexa com o meu ato falhado. Por isso, estou aqui.
Estou serena. Trezentos e sessenta e cinco dias serviram para amadurecer esta resolução. Venho devolver o que daqui foi retirado. Venho encontrar-me comigo que me deixei aqui, sozinha, a vaguear sem corpo, à espera desta devolução para poder ir. Até onde os meus olhos alcançam, mar, mar, mar. Aqui quero ser sepultada. Quero deixar que este elemento líquido me envolva, me submerja, me inume. Não quero outro epitáfio senão a espuma das ondas sobre mim. Não quero outras lágrimas senão as da chuvas que vierem. Nem outros suspiros senão os dos ventos distantes. É preciso que se saiba que não tenho medo, nem da dor, nem do que está um pouco para além disso e que não sei o que é. O desconhecido que está à minha frente é menos aterrador do que o conhecido que tenho atrás de mim.

Desço um pouco mais, há um ponto no precipício que sobressai como uma plataforma sobre o mar, é para ali que tenho que ir. Procuro o melhor ângulo. Graças ao terraço rochoso que se abre sobre o vazio, o meu vulto fica invisível da praia. Não quero alarmismos, seria demasiado arriscado. Fica de mim este gesto calculado, pensado e estranho. Até para mim é um mistério. Uma força poderosa impeliu-me para aqui. Abro os braços. Mergulho no vazio, rezando pelo fim. Vivo um derradeiro sopro de vida e de liberdade. É o livre arbítrio. Fui.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

365 dias depois (V)

            Atravessei a vila neste estado de espírito, entregue a este meu desporto que é observar os outros, imaginar-lhes a história que trazem consigo, outra forma de ADN, identidades intransmissíveis, as histórias não se repetem. Se não há dois rostos iguais, decerto não haverá duas histórias de vida iguais, ainda que todas comecem com o nascimento e terminem seja de que maneira for. Mesmo nas mortes em massa, a forma como cada um enfrenta o momento final é distinta, inconfundível. Tomo, finalmente, uma rua que sobe ao promontório. Subo, subo, subo, em ritmo brando, sem pressa. Caminho com os olhos baixos, forçada pela inclinação. As ruas que atravesso estão sossegadas, parece que toda a gente saiu para um outro lugar. São ruas sombrias e frescas, escondidas do sol, por vezes sou surpreendida por uma mais ventosa e um arrepio corre-me pela pele. Há um ano, não fiz este caminho, vim de carro, conduzi até aqui num estado de exaltação que não é o mesmo de hoje. Hoje estou tranquila, o terreno que piso é conhecido, só tenho que fazer com que tudo dê certo, corrigir o erro de cálculo que não soube prever e que me obrigou a voltar, a terminar o que aqui comecei e deixei incompleto. Ato falhado.
            Quando chego lá acima, tenho que inverter o rumo. Tomo a direção do sol que se começa a pôr, inclinado já sobre o horizonte. O ângulo ainda não me encandeia a visão. Nada me incomoda, senão a preocupação de ser exata e eficaz. Caminho sempre, não sei já a que velocidade. Todo o meu ser está concentrado. Estou reduzida a um impulso cerebral que comanda mecanicamente cada um dos meus gestos. Afasto-me da zona das casas. Cruzo-me com poucas pessoas, o fim da tarde convida mais à esplanada ou ao regresso a casa. Há trezentos e sessenta e cinco dias era este o quadro. É preciso que pense agora no que aqui se passou. É esta a minha história. Vim até aqui com um propósito. Cheguei de carro, que estacionei à beira de uma estrada de terra, oculta por uns canaviais. À beira do precipício, mirei todo aquele mar em redor. O local que escolhi é alto e o som do mar chega surdo e indistinto. Lá em baixo, as ondas criam um manto de espuma muito característico, que, visto de cima, parece suave e consistente, macio. Nesse dia, as lágrimas corriam-me pela cara, copiosas, imparáveis. Devo ter soluçado. Vivia um desespero total, um desamparo e uma solidão que não percebia. Queria ser salva e ninguém estava por perto. Como é que ninguém sabia que eu precisava tanto de ajuda? Como é que miraculosamente ao meu lado não se materializava um rosto, um gesto, a redenção? Porque é que as palavras certas não haviam de ser ditas e eu veria o que agora não conseguia sequer imaginar. Nada disso aconteceu. Eu cheguei-me bem à beira, cega ainda das lágrimas. Limpei-as como pude. Olhei em volta e decidi que assim tinha que ser. Abeirei-me ainda mais do vazio e vi essa imagem, a de um vazio que vai ao encontro de outro. Inclinei-me bem para a frente e dei um impulso mais forte ao meu corpo, como quem mergulha, e era o que eu estava a fazer, a mergulhar na morte porque não suportava a vida.

            Ao contrário do que se pensa, a iminência do fim não é rápida, é lenta, muito lenta. Podia jurar que o meu cérebro se deslocou todo para um sítio só. Todas as ligações nervosas se devem ter concentrado na antecipação do choque e da dor que adviria do meu gesto. Não pensei que ia morrer, creio que pensei que continuaria ainda depois, que assistiria a tudo e que continuaria a ser eu. O meu corpo embateu finalmente em alguma coisa, ainda não era a dor, porque continuava a chocar, a rebolar. Agora o filme era muito, muito rápido. Comecei a sentir pancadas secas e estremecimentos. Fui sacudida vezes sem conta, sentia a pele a rasgar-se enquanto caía e rebolava, caía e rebolava, caía e rebolava naquilo que parecia um infinito. O corpo parou enfim e o que restava de mim, as ligações nervosas que resistiram no meu centro, apagaram-se e mergulhei na escuridão. Não, não morri. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

365 dias depois (IV)

            Descemos uma rua estreita e muito inclinada que termina numa praia. Sinto vividamente os movimentos do autocarro, quase travo ao mesmo tempo que o motorista. O meu corpo inclina-se para a frente por causa da travagem progressiva. O volante é rodado em movimentos amplos e bem desenhados, prende depois de ter completado a rotação. O homem que o conduz também inclina o seu corpo. Somos uma nova espécie de árvores e outros os ventos que nos vergam. Aperto uma mão na outra e todo o meu corpo se retesa de tensão. Estou perto. Há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, fiz este mesmo percurso. A memória é tão forte e tão clara que confundo os tempos e o hoje é o ontem. Toda a cena é uma repetição em câmara lenta. Posso viver de olhos fechados a partir daqui, sei exatamente os tempos, o cronograma, tenho quase os passos contados. O autocarro faz uma curva muito apertada para entrar na garagem do fim da linha, eis o ligeiro sobressalto e o rangido das molas da suspensão quando transpõe o limite dos portões que encerram a garagem. Entra-me pelas narinas o cheiro acre e enjoativo a gasóleo que paira no ar e que nada parece poder retirar das garagens. Em criança, este cheiro era o suficiente para me fazer vomitar. Mais uma curva ampla, primeiro para a direita e depois para a esquerda, linha oito. Um grande relógio de parede, redondo e branco marca dezoito horas e quinze minutos. Há uma diferença de alguns minutos em relação ao dia do passado. Uma sacudidela breve e súbita indica que parámos. As pessoas à minha volta levantam-se com lentidão. Retiram volumes, alongam discretamente o corpo, soltam-se alguns risos, há conversas abafados que não compreendo, enquanto outras são terminadas à pressa e numa oitava mais alta do que deviam. Também eu retiro o meu saco. Penduro-o no ombro. Encaminho-me para a saída, desço os degraus e o cheiro é mais forte, quase insuportável. Saio dali mesmo para a rua. Está vento e os cheiros iodados do mar chegam até mim. Sorvo-os com gratidão, enquanto inclino a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. Afasto-me rapidamente, viro à direita no fim da rua e sigo por um passeio largo que corre perpendicular ao mar.

            É quase o fim do dia de praia. Há imensa gente nas ruas, um vozear contínuo rodeia-me. As pessoas com que me cruzo obrigam-me a reduzir o meu passo. Sem que dê conta, aquele bulício estival interfere comigo e caminho com um ligeiro sorriso nos lábios, quase esquecida de mim e do que aqui me trouxe. Não faz mal, tudo estará no sítio certo assim que for preciso e eu também estarei a horas no meu encontro comigo mesmo. Por agora, posso deixar-me ir. Paira ainda no ar um cheiro que sempre relacionei com o do creme Nívea que usava em criança. As peles queimadas do sol fazem os olhos dos outros mais brilhantes, toda a gente parece tão feliz, tão acompanhada, tão cheia de vida, o que me impressiona. Pequenas lojas de artesanato oferecem imagens deste lugar em diferentes suportes, nas toalhas de banho, nas toalhas de mesa, nas camisolas, nas canecas, nas bases de copo: uma língua de mar muito extensa, um areal vasto, ondas perfeitas e ao fundo um promontório que entra pelo mar adentro quase a perder de vista, um cabo, finisterra. O cabo do fim. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

365 dias depois (III)

            Estive longe algum tempo, o autocarro já saiu da autoestrada. Segue por uma estrada que é bonita, ladeada de plátanos, corre sobre uma elevação de que se avista uma vale. A perder de vista, terrenos agrícolas e casas dispersas. Alguns animais. A cidade ficou lá atrás. A cadência do andamento vai-me entorpecendo. Fecho os olhos e entro num estado de semi-vigília que não me deixa entrar num sono profundo. A dor no pescoço desperta-me, é preciso que me ajeite melhor. A dor física tornou-se a materialização de todas as outras dores. Diz-se que só experienciamos uma dor de cada vez, mas a dor física compatibiliza-se com o sofrimento e a angústia que me vão torturando. As fraturas nos ossos curaram-se, os rasgões na pele desvaneceram-se, os golpes profundos fecharam-se e deixaram linhas pelo corpo que contam a minha história. A ansiedade e a angústia, pelo contrário, só sabem crescer, alimentam-se da minha vontade, esgotando-a pouco a pouco e vou mirrando dentro de mim. Por isso não me importo que o pescoço me doa, que tenha que me mexer devagar e com cuidado, porque os meus ossos ainda estão a consolidar-se uns nos outros, porque há linhas no meu corpo que continuam a doer se lhe toco, só na pele não restam sinais. As crostas das escoriações foram caindo e a pele regenerou-se. Eu, essa abstração que habita em mim, não sou capaz de me regenerar. Enfio a mão por debaixo da manga da blusa que trago vestida e procuro a cicatriz. É comprida, tem um toque estranho, faz um relevo que percorro com os dedos, conto as marcas dos pontos, são dez. Já não me dói aqui. Sei a cor sem olhar, é rosa pálido. Há outras assim no meu corpo, desenhando um mapa que não me guia para lado nenhum, linhas sem continuidade, interrompidas, um ato falhado. Vou deslizando os dedos pela cicatriz, é um tique que ganhei, como quando se roda um anel no dedo só para se manter as mãos ocupadas enquanto se pensa.
            A direção que o autocarro toma coloca o sol do lado da minha janela. A luz é demasiado forte. Corro as cortinas e a penumbra conforta-me. Consigo recostar-me e volto a fechar os olhos, encosto com mais cuidado a cabeça no vidro, apoio-me na mão, o cotovelo fincado no braço do banco. Descanso. A mente vagueia outra vez. Agora começo a ficar ansiosa pelo fim da viagem, se pudesse apressaria o andamento. Imagino o autocarro em marcha de urgência pela estrada, os carros a encostarem, a velocidade a aumentar. Entrego-me a um jogo que fazia quando era criança, como se pudesse ver-me a deslocar-me no tempo, ver o tempo a decorrer. Daqui a pouco mais de meia hora terei chegado, vejo-me, daqui, a descer do autocarro, a encarar a brancura do dia, a encaminhar-me por uma rua que desce em direção à praia, olho para trás e vejo-me sentada no autocarro à espera que os grãos de areia se escoem na ampulheta. Daqui a trinta minutos estarei a fazer o que antevejo e depois passa num instante. A impaciência borbulha-me no sangue, acelera-o nas veias. É preciso que fique calma. Já sei! Procuro na lista de música o Verão de Vivaldi. Os primeiros acordes prendem-me logo a atenção. Vou acompanhando as notas, os andamentos e esqueço-me de mim.
            O autocarro entra agora numa pequena vila. É a última paragem antes de chegarmos ao destino. Sei que nem chegará a desligar-se o motor. Será uma pausa breve. Abro de novo as cortinas. O dia impiedoso de verão vai cedendo. O sol já se inclina. Lá fora, o ar deve ser mais respirável. Ao lado do ponto de paragem há um jardim, plano, arborizado. Combina tão bem com a música que oiço. Faço mais um quadro, vejo os insetos que volteiam no ar, duas meninas correm, mesmo daqui consigo perceber que estão um bocadinho transpiradas. Cruzam-se perigosamente com uma bicicleta. Há uma esplanada que está cheia. Foco-me num homem sozinho que lê o jornal, tem uma chávena de café à sua frente, um copo com água. Os cabelos são ligeiramente compridos, já com alguns brancos. Está completamente absorto na leitura. É interessante. Se eu saísse, levantaria os olhos? Entretanto vejo uma senhora que desceu do autocarro, retira a bagagem, uma jovem encaminha-se para ela. Beijam-se e abraçam-se. Estão felizes por se reverem. Se eu descer, alguém se encaminhará para mim? Alguém se alegrará com o meu regresso? Disparate, não conheço ninguém aqui. Desce sobre mim uma tristeza miúda, como uma chuvinha fraca. Para quem posso eu voltar? Ninguém está verdadeiramente à minha espera em lugar nenhum. A minha família, que tem cuidado de mim, fá-lo mais por dever para com os outros do que por afeição por mim. O simples pensamento de que posso ser uma dever na vida dos outros acabrunha-me. O motorista reentra apressadamente no autocarro e voltamos a andar. Mais uma vez um balanço pesado. É a última etapa. Mal consigo estar parada. Endireito-me no assento, sem querer, inclino-me um pouco para a frente, procurando inconscientemente acelerar este veículo que teima em mexer mais devagar do que a minha inquietação.
            Sem ver porquê, lembro-me agora de uma outra viagem, desta vez é primavera. Regresso a casa e há alguém à minha espera. Está um homem dentro de um carro estacionado. Vejo-o a seguir com o olhar o movimento do autocarro. É ele que se endireita no assento, crava as mãos no volante. Ainda não me viu. Viu-me agora, sorrimos rasgadamente um para o outro, aceno-lhe. Quando paramos, sou quase a primeira a pôr-me de pé. Educadamente sou passagem às pessoas no corredor. Tremo ligeiramente. A porta vai-se aproximando. Murmuro boa tarde ao motorista com quem cruzo o olhar no momento de sair. Desço os três degraus e ele está já fora do carro. Quase corremos um para o outro, não nos contemos e abraçamo-nos. Mostramo-nos contidos, mas não é assim que nos sentimos. O abraço torna-se mais apertado. Naquele dia, voltei para alguém, houve alegria por eu estar finalmente ali. No tempo em que havia um sentido, um rumo. Depois as coisas foram acabando, desmoronaram-se e hoje ninguém me espera. Sou só eu que vou ao meu encontro.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

365 dias depois (II)

           Há vinte anos atrás, também era verão e também era amor. Uma rapariga muito jovem despedia-se, numa rua lateral a esta avenida movimentada, de um jovem tão jovem quanto ela. Mais alto, ele debruça-se sobre ela e beija-a com suavidade na testa. É um beijo leve, não houve uma pressão mais forte. Os dois sabiam que era a última vez que se viam, que tudo acabava ali e não era por não se amarem. Ela não devolveu o beijo, deixou-se beijar apenas e, sem o saber ainda, aquele momento ficou para sempre, nunca mais o esqueceu e aprendeu a viver com ele como se fosse uma cicatriz. Os anos fizeram com que olhasse para a cicatriz e quase não se lembrasse como tinha sido feita, habitando-se à marca, familiarizando-se com ela.
            Com o autocarro ainda parado, olhei fixamente para aquele ponto da rua. Os edifícios eram exatamente os mesmos, as mesmas as cores, o mesmo movimento de pessoas a ir e a vir, os mesmos carros parados e em movimento. Como há vinte anos atrás, nenhum destes pormenores é realmente visto por mim. O que estou a olhar é para aquela rapariga que fui, capaz de amar assim, talvez por ter sido uma vez jovem, talvez porque o tempo não me tivesse ainda corroído. Nesse tempo, aguentei aquela despedida quase sem uma palavra, sem uma lágrima, nem uma queixa. Não perguntei porquê, sabia que tinha de ser. Nos dias que se seguiram, tive que aprender a encher aquele vazio. Soube muito bem viver apesar de ter morrido um pouco e soube mostrar-me como se aquele instante não tivesse acontecido e, até hoje, ninguém soube que um dia me despedi de alguém que era tão importante para mim. Nunca mais o vi, nunca mais soube nada dele. Mesmo quando me encontrei com pessoas que o conheciam, nunca perguntei por ele. Ninguém sabia o que tínhamos tido juntos e eu nunca dei o mais pequeno sinal. As coincidências da vida são tão curiosas. Há vinte anos atrás, depois de me ter despedido dele, fui apanhar um autocarro. Desci esta avenida que agora subo para fazer mais uma viagem que há de ser decisiva. Também hoje é um dia de despedida. Sorrio àquela rapariga e despeço-me dela também. A mulher que sou hoje está feliz por ela ter vivido um amor assim, tudo vale a pena quando alma não é pequena, e a minha creio que nunca o foi, parece-me mais de um tamanho excessivo para poder caber em mim.
            O autocarro arrancou finalmente, outra vez o mesmo balanço pesado. Tomada a faixa lateral que dá acesso à autoestrada, começámos a andar cada vez mais depressa, os prédios começaram a suceder-se cada vez com mais rapidez, as pessoas pareciam paradas nos passeios e eu deixei de me conseguir fixar em pontos que me entretivessem os pensamento. Voltei a ficar consciente de mim. Fui obrigada a pensar no que ia fazer. Fiz uma revisão da minha vida. Divorciada, por vontade minha, a bem do rigor é importante dizê-lo para que depois não se diga que isso explica alguma coisa. Mãe de um filho de catorze anos, com quem não consegui ligar-me tanto como desejaria. Ultimamente, tem passado mais tempo com o pai, porque sim, e eu não tenho feito nada para que seja de outra. Microempresária de sucesso – consigo sustentar-me. Sou bastante bonita e sei que sou, daí ser bastante segura. Quando caminho, tenho um tique que é abrir bem os ombros e levantar ligeiramente a cabeça, pareço um pouco altiva, mas é porque quero. Amei e fui amada, mais do que devia e, possivelmente, mais do que merecia. Traí e fui traída, rejeitei e fui rejeitada, sempre mais do que podia ou devia. Excedi-me e os deuses não perdoam e talvez me queiram castigar. Pode bem ser que não haja deuses, que o julgamento a temer seja o nosso, que a condenação tenhamos que ser nós a executá-la. Não sei e sei-o bem.
            O autocarro rola agora livremente na autoestrada pouco congestionada. Vem-me outra cena à memória. Dia de balanço? A viagem é propícia a estes devaneios, a estes reencontros com o nosso passado. Sou, por natureza, reflexiva, ensimesmada. A minha memória não me dá tréguas. De repente, lembro-me de pequenos episódios da minha vida e, à distância dos anos, revivo tão nitidamente esses passos lembrados que eles me despertam, no momento da lembrança, sentimentos de quem está na posição de juiz. Avalio o que fiz, o que disse, as opções que tomei, os deslizes, o mal que fiz aos outros e coro de vergonha, surpreendo-me, sobressalto-me com a minha frieza. Descobri algures que sou uma pessoa fria, que não me emociono com facilidade, que não arranco cabelos, que não grito, não choro, não me apiedo pelos outros. Tenho um bocadinho de desgosto de mim. Há pouco mudei de música, alguém canta nos meus ouvidos que devemos tomar conta de nós próprios. Concordo, tenho de tomar conta de mim, como sei, mais mal do que bem. Deixo aos outros a mesma liberdade. Não tenho tomado bem conta de mim, tenho-me ferido e mutilado, sempre em excesso, sempre mais do que devia.

            Lá me enredei eu nestes meus pensamentos dispersos que se embaraçam uns nos outros. É outra vez verão. Uma pequena vila balnear, numas férias. Uma relação que já durava há tempo, duas pessoas que se conheciam bem e já cansadas um do outro. Não souberam ler os sinais. O dia tinha sido de tensão. Estavam mal-humorados. Não tinham conseguido sintonizar a mesma onda de frequência. Pareciam estar em desacordo acerca de tudo: horários, o que fazer, o que comer. Duas pessoas que nunca se tivessem visto conseguiriam sintonizar-se melhor. Já tinham passado a fase em que eram bem-educados um com o outro. A familiaridade tinha revelado tantas diferenças que já não sabiam em que se sustentar. Depois de um dia feito de pequenas batalhas feita de ironias e de subentendidos, saíram para jantar. Desentenderam-se logo no pedido e a tensão atingiu um tal nível que até o empregado parecia evitar aquela mesa. Houve um momento em, inadvertidamente, as mãos se tocaram e sentiram uma descarga de eletricidade estática. Deve ter sido esse choque que acendeu o rastilho. Quando saíram do restaurante, estavam descontrolados e não havia decoro que os pudesse conter. Discutiram no meio da rua, primeiro em surdina, de dentes rilhados, e olhos baixos. Pararam a meio da marginal e enfrentaram-se como inimigos em que se estavam a tornar. Empurraram-se com força. Avançaram assim pela rua, aos empurrões, bêbados de raiva. As vozes levantaram-se sem darem por isso, porque já não se ouviam. Palavras que quiseram dizer e que nunca poderiam ter sido ditas se fosse amor. Em casa, cega de raiva, atirei-lhe uma bofetada à cara. Não tive tempo de saborear o gosto desse gesto violento, instantaneamente senti a minha cabeça a rodopiar com o impacto da sua mão na minha cara e logo a seguir outra. Caí sobre a cama e ele caiu sobre mim. Perdi a conta às vezes que nos batemos. Não se podia descer mais baixo. Era o fim de tudo. Nessa noite fiz sozinha uma viagem de regresso, em solilóquio a ensinar-me o que fazer depois. Sinto mais viva do que nunca a vergonha daquele dia, só isso. Nada que possa ser lamentado, foi um erro, um dos muitos que cometi. Desta mulher excessiva não me posso despedir, levo-a comigo para onde for, preciso dela para a solução que encontrei.