segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

365 dias depois (Fim)

Essa foi a ironia com a qual não contei. Na verdade, acabei por ser salva. A queda foi amortecida pelas piteiras, pelos arbustos lenhosos que crescem nesta encosta quase a pique. Fiquei ali, como uma lâmpada cuja ligação elétrica tem intermitências. Oscilando entre a consciência e a inconsciência. Soube depois do meu resgate, de um salvamento impressionante de dedicação e resistência ao perigo. Soube depois de procedimentos médicos que evitaram que perecesse. Soube depois do longo tempo em que permaneci num coma induzido. Soube depois que não ter morrido significava uma nova vida, podia recomeçar, podia tentar. Soube muito depois que não iria conseguir. Debati-me durante meses com uma sensação de irrealidade, como se tivesse ficado lá e de lá pudesse ver o que foi acontecendo comigo. Não fui capaz de enfrentar a astenia da minha vontade. O tempo passou a arrastar-se demasiado penosamente e todos dias era tentada pelo pensamento de lamentar que tudo não tivesse terminado ali. Dei-me conta do esforço dos outros à minha volta, dos olhares discretos, das meias palavras. O cuidado que punham na maneira como lidavam comigo era palpável, colava-se-me à pele como suor de verão. Cansavam-me as tentativas dos outros para que eu percebesse a sorte que tinha tido (sorte, a palavra é de uma ironia atroz), onde eles viam sorte, eu via um lamentável erro, uma brincadeira de alguém com um sentido de humor muito negro. Eu não queria viver. Eu tinha morrido para mim naquele dia. O que restava eram coisas que fazem um corpo: pele, unhas, cabelo, órgãos a funcionar, a cumprirem uma função biológica tecida na memória ancestral que faz com não consigamos deixar de respirar. Eu já não estava ali. Desde aquele dia malogrado eu estive sempre aqui, perplexa com o meu ato falhado. Por isso, estou aqui.
Estou serena. Trezentos e sessenta e cinco dias serviram para amadurecer esta resolução. Venho devolver o que daqui foi retirado. Venho encontrar-me comigo que me deixei aqui, sozinha, a vaguear sem corpo, à espera desta devolução para poder ir. Até onde os meus olhos alcançam, mar, mar, mar. Aqui quero ser sepultada. Quero deixar que este elemento líquido me envolva, me submerja, me inume. Não quero outro epitáfio senão a espuma das ondas sobre mim. Não quero outras lágrimas senão as da chuvas que vierem. Nem outros suspiros senão os dos ventos distantes. É preciso que se saiba que não tenho medo, nem da dor, nem do que está um pouco para além disso e que não sei o que é. O desconhecido que está à minha frente é menos aterrador do que o conhecido que tenho atrás de mim.

Desço um pouco mais, há um ponto no precipício que sobressai como uma plataforma sobre o mar, é para ali que tenho que ir. Procuro o melhor ângulo. Graças ao terraço rochoso que se abre sobre o vazio, o meu vulto fica invisível da praia. Não quero alarmismos, seria demasiado arriscado. Fica de mim este gesto calculado, pensado e estranho. Até para mim é um mistério. Uma força poderosa impeliu-me para aqui. Abro os braços. Mergulho no vazio, rezando pelo fim. Vivo um derradeiro sopro de vida e de liberdade. É o livre arbítrio. Fui.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

365 dias depois (V)

            Atravessei a vila neste estado de espírito, entregue a este meu desporto que é observar os outros, imaginar-lhes a história que trazem consigo, outra forma de ADN, identidades intransmissíveis, as histórias não se repetem. Se não há dois rostos iguais, decerto não haverá duas histórias de vida iguais, ainda que todas comecem com o nascimento e terminem seja de que maneira for. Mesmo nas mortes em massa, a forma como cada um enfrenta o momento final é distinta, inconfundível. Tomo, finalmente, uma rua que sobe ao promontório. Subo, subo, subo, em ritmo brando, sem pressa. Caminho com os olhos baixos, forçada pela inclinação. As ruas que atravesso estão sossegadas, parece que toda a gente saiu para um outro lugar. São ruas sombrias e frescas, escondidas do sol, por vezes sou surpreendida por uma mais ventosa e um arrepio corre-me pela pele. Há um ano, não fiz este caminho, vim de carro, conduzi até aqui num estado de exaltação que não é o mesmo de hoje. Hoje estou tranquila, o terreno que piso é conhecido, só tenho que fazer com que tudo dê certo, corrigir o erro de cálculo que não soube prever e que me obrigou a voltar, a terminar o que aqui comecei e deixei incompleto. Ato falhado.
            Quando chego lá acima, tenho que inverter o rumo. Tomo a direção do sol que se começa a pôr, inclinado já sobre o horizonte. O ângulo ainda não me encandeia a visão. Nada me incomoda, senão a preocupação de ser exata e eficaz. Caminho sempre, não sei já a que velocidade. Todo o meu ser está concentrado. Estou reduzida a um impulso cerebral que comanda mecanicamente cada um dos meus gestos. Afasto-me da zona das casas. Cruzo-me com poucas pessoas, o fim da tarde convida mais à esplanada ou ao regresso a casa. Há trezentos e sessenta e cinco dias era este o quadro. É preciso que pense agora no que aqui se passou. É esta a minha história. Vim até aqui com um propósito. Cheguei de carro, que estacionei à beira de uma estrada de terra, oculta por uns canaviais. À beira do precipício, mirei todo aquele mar em redor. O local que escolhi é alto e o som do mar chega surdo e indistinto. Lá em baixo, as ondas criam um manto de espuma muito característico, que, visto de cima, parece suave e consistente, macio. Nesse dia, as lágrimas corriam-me pela cara, copiosas, imparáveis. Devo ter soluçado. Vivia um desespero total, um desamparo e uma solidão que não percebia. Queria ser salva e ninguém estava por perto. Como é que ninguém sabia que eu precisava tanto de ajuda? Como é que miraculosamente ao meu lado não se materializava um rosto, um gesto, a redenção? Porque é que as palavras certas não haviam de ser ditas e eu veria o que agora não conseguia sequer imaginar. Nada disso aconteceu. Eu cheguei-me bem à beira, cega ainda das lágrimas. Limpei-as como pude. Olhei em volta e decidi que assim tinha que ser. Abeirei-me ainda mais do vazio e vi essa imagem, a de um vazio que vai ao encontro de outro. Inclinei-me bem para a frente e dei um impulso mais forte ao meu corpo, como quem mergulha, e era o que eu estava a fazer, a mergulhar na morte porque não suportava a vida.

            Ao contrário do que se pensa, a iminência do fim não é rápida, é lenta, muito lenta. Podia jurar que o meu cérebro se deslocou todo para um sítio só. Todas as ligações nervosas se devem ter concentrado na antecipação do choque e da dor que adviria do meu gesto. Não pensei que ia morrer, creio que pensei que continuaria ainda depois, que assistiria a tudo e que continuaria a ser eu. O meu corpo embateu finalmente em alguma coisa, ainda não era a dor, porque continuava a chocar, a rebolar. Agora o filme era muito, muito rápido. Comecei a sentir pancadas secas e estremecimentos. Fui sacudida vezes sem conta, sentia a pele a rasgar-se enquanto caía e rebolava, caía e rebolava, caía e rebolava naquilo que parecia um infinito. O corpo parou enfim e o que restava de mim, as ligações nervosas que resistiram no meu centro, apagaram-se e mergulhei na escuridão. Não, não morri. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

365 dias depois (IV)

            Descemos uma rua estreita e muito inclinada que termina numa praia. Sinto vividamente os movimentos do autocarro, quase travo ao mesmo tempo que o motorista. O meu corpo inclina-se para a frente por causa da travagem progressiva. O volante é rodado em movimentos amplos e bem desenhados, prende depois de ter completado a rotação. O homem que o conduz também inclina o seu corpo. Somos uma nova espécie de árvores e outros os ventos que nos vergam. Aperto uma mão na outra e todo o meu corpo se retesa de tensão. Estou perto. Há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, fiz este mesmo percurso. A memória é tão forte e tão clara que confundo os tempos e o hoje é o ontem. Toda a cena é uma repetição em câmara lenta. Posso viver de olhos fechados a partir daqui, sei exatamente os tempos, o cronograma, tenho quase os passos contados. O autocarro faz uma curva muito apertada para entrar na garagem do fim da linha, eis o ligeiro sobressalto e o rangido das molas da suspensão quando transpõe o limite dos portões que encerram a garagem. Entra-me pelas narinas o cheiro acre e enjoativo a gasóleo que paira no ar e que nada parece poder retirar das garagens. Em criança, este cheiro era o suficiente para me fazer vomitar. Mais uma curva ampla, primeiro para a direita e depois para a esquerda, linha oito. Um grande relógio de parede, redondo e branco marca dezoito horas e quinze minutos. Há uma diferença de alguns minutos em relação ao dia do passado. Uma sacudidela breve e súbita indica que parámos. As pessoas à minha volta levantam-se com lentidão. Retiram volumes, alongam discretamente o corpo, soltam-se alguns risos, há conversas abafados que não compreendo, enquanto outras são terminadas à pressa e numa oitava mais alta do que deviam. Também eu retiro o meu saco. Penduro-o no ombro. Encaminho-me para a saída, desço os degraus e o cheiro é mais forte, quase insuportável. Saio dali mesmo para a rua. Está vento e os cheiros iodados do mar chegam até mim. Sorvo-os com gratidão, enquanto inclino a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. Afasto-me rapidamente, viro à direita no fim da rua e sigo por um passeio largo que corre perpendicular ao mar.

            É quase o fim do dia de praia. Há imensa gente nas ruas, um vozear contínuo rodeia-me. As pessoas com que me cruzo obrigam-me a reduzir o meu passo. Sem que dê conta, aquele bulício estival interfere comigo e caminho com um ligeiro sorriso nos lábios, quase esquecida de mim e do que aqui me trouxe. Não faz mal, tudo estará no sítio certo assim que for preciso e eu também estarei a horas no meu encontro comigo mesmo. Por agora, posso deixar-me ir. Paira ainda no ar um cheiro que sempre relacionei com o do creme Nívea que usava em criança. As peles queimadas do sol fazem os olhos dos outros mais brilhantes, toda a gente parece tão feliz, tão acompanhada, tão cheia de vida, o que me impressiona. Pequenas lojas de artesanato oferecem imagens deste lugar em diferentes suportes, nas toalhas de banho, nas toalhas de mesa, nas camisolas, nas canecas, nas bases de copo: uma língua de mar muito extensa, um areal vasto, ondas perfeitas e ao fundo um promontório que entra pelo mar adentro quase a perder de vista, um cabo, finisterra. O cabo do fim. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

365 dias depois (III)

            Estive longe algum tempo, o autocarro já saiu da autoestrada. Segue por uma estrada que é bonita, ladeada de plátanos, corre sobre uma elevação de que se avista uma vale. A perder de vista, terrenos agrícolas e casas dispersas. Alguns animais. A cidade ficou lá atrás. A cadência do andamento vai-me entorpecendo. Fecho os olhos e entro num estado de semi-vigília que não me deixa entrar num sono profundo. A dor no pescoço desperta-me, é preciso que me ajeite melhor. A dor física tornou-se a materialização de todas as outras dores. Diz-se que só experienciamos uma dor de cada vez, mas a dor física compatibiliza-se com o sofrimento e a angústia que me vão torturando. As fraturas nos ossos curaram-se, os rasgões na pele desvaneceram-se, os golpes profundos fecharam-se e deixaram linhas pelo corpo que contam a minha história. A ansiedade e a angústia, pelo contrário, só sabem crescer, alimentam-se da minha vontade, esgotando-a pouco a pouco e vou mirrando dentro de mim. Por isso não me importo que o pescoço me doa, que tenha que me mexer devagar e com cuidado, porque os meus ossos ainda estão a consolidar-se uns nos outros, porque há linhas no meu corpo que continuam a doer se lhe toco, só na pele não restam sinais. As crostas das escoriações foram caindo e a pele regenerou-se. Eu, essa abstração que habita em mim, não sou capaz de me regenerar. Enfio a mão por debaixo da manga da blusa que trago vestida e procuro a cicatriz. É comprida, tem um toque estranho, faz um relevo que percorro com os dedos, conto as marcas dos pontos, são dez. Já não me dói aqui. Sei a cor sem olhar, é rosa pálido. Há outras assim no meu corpo, desenhando um mapa que não me guia para lado nenhum, linhas sem continuidade, interrompidas, um ato falhado. Vou deslizando os dedos pela cicatriz, é um tique que ganhei, como quando se roda um anel no dedo só para se manter as mãos ocupadas enquanto se pensa.
            A direção que o autocarro toma coloca o sol do lado da minha janela. A luz é demasiado forte. Corro as cortinas e a penumbra conforta-me. Consigo recostar-me e volto a fechar os olhos, encosto com mais cuidado a cabeça no vidro, apoio-me na mão, o cotovelo fincado no braço do banco. Descanso. A mente vagueia outra vez. Agora começo a ficar ansiosa pelo fim da viagem, se pudesse apressaria o andamento. Imagino o autocarro em marcha de urgência pela estrada, os carros a encostarem, a velocidade a aumentar. Entrego-me a um jogo que fazia quando era criança, como se pudesse ver-me a deslocar-me no tempo, ver o tempo a decorrer. Daqui a pouco mais de meia hora terei chegado, vejo-me, daqui, a descer do autocarro, a encarar a brancura do dia, a encaminhar-me por uma rua que desce em direção à praia, olho para trás e vejo-me sentada no autocarro à espera que os grãos de areia se escoem na ampulheta. Daqui a trinta minutos estarei a fazer o que antevejo e depois passa num instante. A impaciência borbulha-me no sangue, acelera-o nas veias. É preciso que fique calma. Já sei! Procuro na lista de música o Verão de Vivaldi. Os primeiros acordes prendem-me logo a atenção. Vou acompanhando as notas, os andamentos e esqueço-me de mim.
            O autocarro entra agora numa pequena vila. É a última paragem antes de chegarmos ao destino. Sei que nem chegará a desligar-se o motor. Será uma pausa breve. Abro de novo as cortinas. O dia impiedoso de verão vai cedendo. O sol já se inclina. Lá fora, o ar deve ser mais respirável. Ao lado do ponto de paragem há um jardim, plano, arborizado. Combina tão bem com a música que oiço. Faço mais um quadro, vejo os insetos que volteiam no ar, duas meninas correm, mesmo daqui consigo perceber que estão um bocadinho transpiradas. Cruzam-se perigosamente com uma bicicleta. Há uma esplanada que está cheia. Foco-me num homem sozinho que lê o jornal, tem uma chávena de café à sua frente, um copo com água. Os cabelos são ligeiramente compridos, já com alguns brancos. Está completamente absorto na leitura. É interessante. Se eu saísse, levantaria os olhos? Entretanto vejo uma senhora que desceu do autocarro, retira a bagagem, uma jovem encaminha-se para ela. Beijam-se e abraçam-se. Estão felizes por se reverem. Se eu descer, alguém se encaminhará para mim? Alguém se alegrará com o meu regresso? Disparate, não conheço ninguém aqui. Desce sobre mim uma tristeza miúda, como uma chuvinha fraca. Para quem posso eu voltar? Ninguém está verdadeiramente à minha espera em lugar nenhum. A minha família, que tem cuidado de mim, fá-lo mais por dever para com os outros do que por afeição por mim. O simples pensamento de que posso ser uma dever na vida dos outros acabrunha-me. O motorista reentra apressadamente no autocarro e voltamos a andar. Mais uma vez um balanço pesado. É a última etapa. Mal consigo estar parada. Endireito-me no assento, sem querer, inclino-me um pouco para a frente, procurando inconscientemente acelerar este veículo que teima em mexer mais devagar do que a minha inquietação.
            Sem ver porquê, lembro-me agora de uma outra viagem, desta vez é primavera. Regresso a casa e há alguém à minha espera. Está um homem dentro de um carro estacionado. Vejo-o a seguir com o olhar o movimento do autocarro. É ele que se endireita no assento, crava as mãos no volante. Ainda não me viu. Viu-me agora, sorrimos rasgadamente um para o outro, aceno-lhe. Quando paramos, sou quase a primeira a pôr-me de pé. Educadamente sou passagem às pessoas no corredor. Tremo ligeiramente. A porta vai-se aproximando. Murmuro boa tarde ao motorista com quem cruzo o olhar no momento de sair. Desço os três degraus e ele está já fora do carro. Quase corremos um para o outro, não nos contemos e abraçamo-nos. Mostramo-nos contidos, mas não é assim que nos sentimos. O abraço torna-se mais apertado. Naquele dia, voltei para alguém, houve alegria por eu estar finalmente ali. No tempo em que havia um sentido, um rumo. Depois as coisas foram acabando, desmoronaram-se e hoje ninguém me espera. Sou só eu que vou ao meu encontro.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

365 dias depois (II)

           Há vinte anos atrás, também era verão e também era amor. Uma rapariga muito jovem despedia-se, numa rua lateral a esta avenida movimentada, de um jovem tão jovem quanto ela. Mais alto, ele debruça-se sobre ela e beija-a com suavidade na testa. É um beijo leve, não houve uma pressão mais forte. Os dois sabiam que era a última vez que se viam, que tudo acabava ali e não era por não se amarem. Ela não devolveu o beijo, deixou-se beijar apenas e, sem o saber ainda, aquele momento ficou para sempre, nunca mais o esqueceu e aprendeu a viver com ele como se fosse uma cicatriz. Os anos fizeram com que olhasse para a cicatriz e quase não se lembrasse como tinha sido feita, habitando-se à marca, familiarizando-se com ela.
            Com o autocarro ainda parado, olhei fixamente para aquele ponto da rua. Os edifícios eram exatamente os mesmos, as mesmas as cores, o mesmo movimento de pessoas a ir e a vir, os mesmos carros parados e em movimento. Como há vinte anos atrás, nenhum destes pormenores é realmente visto por mim. O que estou a olhar é para aquela rapariga que fui, capaz de amar assim, talvez por ter sido uma vez jovem, talvez porque o tempo não me tivesse ainda corroído. Nesse tempo, aguentei aquela despedida quase sem uma palavra, sem uma lágrima, nem uma queixa. Não perguntei porquê, sabia que tinha de ser. Nos dias que se seguiram, tive que aprender a encher aquele vazio. Soube muito bem viver apesar de ter morrido um pouco e soube mostrar-me como se aquele instante não tivesse acontecido e, até hoje, ninguém soube que um dia me despedi de alguém que era tão importante para mim. Nunca mais o vi, nunca mais soube nada dele. Mesmo quando me encontrei com pessoas que o conheciam, nunca perguntei por ele. Ninguém sabia o que tínhamos tido juntos e eu nunca dei o mais pequeno sinal. As coincidências da vida são tão curiosas. Há vinte anos atrás, depois de me ter despedido dele, fui apanhar um autocarro. Desci esta avenida que agora subo para fazer mais uma viagem que há de ser decisiva. Também hoje é um dia de despedida. Sorrio àquela rapariga e despeço-me dela também. A mulher que sou hoje está feliz por ela ter vivido um amor assim, tudo vale a pena quando alma não é pequena, e a minha creio que nunca o foi, parece-me mais de um tamanho excessivo para poder caber em mim.
            O autocarro arrancou finalmente, outra vez o mesmo balanço pesado. Tomada a faixa lateral que dá acesso à autoestrada, começámos a andar cada vez mais depressa, os prédios começaram a suceder-se cada vez com mais rapidez, as pessoas pareciam paradas nos passeios e eu deixei de me conseguir fixar em pontos que me entretivessem os pensamento. Voltei a ficar consciente de mim. Fui obrigada a pensar no que ia fazer. Fiz uma revisão da minha vida. Divorciada, por vontade minha, a bem do rigor é importante dizê-lo para que depois não se diga que isso explica alguma coisa. Mãe de um filho de catorze anos, com quem não consegui ligar-me tanto como desejaria. Ultimamente, tem passado mais tempo com o pai, porque sim, e eu não tenho feito nada para que seja de outra. Microempresária de sucesso – consigo sustentar-me. Sou bastante bonita e sei que sou, daí ser bastante segura. Quando caminho, tenho um tique que é abrir bem os ombros e levantar ligeiramente a cabeça, pareço um pouco altiva, mas é porque quero. Amei e fui amada, mais do que devia e, possivelmente, mais do que merecia. Traí e fui traída, rejeitei e fui rejeitada, sempre mais do que podia ou devia. Excedi-me e os deuses não perdoam e talvez me queiram castigar. Pode bem ser que não haja deuses, que o julgamento a temer seja o nosso, que a condenação tenhamos que ser nós a executá-la. Não sei e sei-o bem.
            O autocarro rola agora livremente na autoestrada pouco congestionada. Vem-me outra cena à memória. Dia de balanço? A viagem é propícia a estes devaneios, a estes reencontros com o nosso passado. Sou, por natureza, reflexiva, ensimesmada. A minha memória não me dá tréguas. De repente, lembro-me de pequenos episódios da minha vida e, à distância dos anos, revivo tão nitidamente esses passos lembrados que eles me despertam, no momento da lembrança, sentimentos de quem está na posição de juiz. Avalio o que fiz, o que disse, as opções que tomei, os deslizes, o mal que fiz aos outros e coro de vergonha, surpreendo-me, sobressalto-me com a minha frieza. Descobri algures que sou uma pessoa fria, que não me emociono com facilidade, que não arranco cabelos, que não grito, não choro, não me apiedo pelos outros. Tenho um bocadinho de desgosto de mim. Há pouco mudei de música, alguém canta nos meus ouvidos que devemos tomar conta de nós próprios. Concordo, tenho de tomar conta de mim, como sei, mais mal do que bem. Deixo aos outros a mesma liberdade. Não tenho tomado bem conta de mim, tenho-me ferido e mutilado, sempre em excesso, sempre mais do que devia.

            Lá me enredei eu nestes meus pensamentos dispersos que se embaraçam uns nos outros. É outra vez verão. Uma pequena vila balnear, numas férias. Uma relação que já durava há tempo, duas pessoas que se conheciam bem e já cansadas um do outro. Não souberam ler os sinais. O dia tinha sido de tensão. Estavam mal-humorados. Não tinham conseguido sintonizar a mesma onda de frequência. Pareciam estar em desacordo acerca de tudo: horários, o que fazer, o que comer. Duas pessoas que nunca se tivessem visto conseguiriam sintonizar-se melhor. Já tinham passado a fase em que eram bem-educados um com o outro. A familiaridade tinha revelado tantas diferenças que já não sabiam em que se sustentar. Depois de um dia feito de pequenas batalhas feita de ironias e de subentendidos, saíram para jantar. Desentenderam-se logo no pedido e a tensão atingiu um tal nível que até o empregado parecia evitar aquela mesa. Houve um momento em, inadvertidamente, as mãos se tocaram e sentiram uma descarga de eletricidade estática. Deve ter sido esse choque que acendeu o rastilho. Quando saíram do restaurante, estavam descontrolados e não havia decoro que os pudesse conter. Discutiram no meio da rua, primeiro em surdina, de dentes rilhados, e olhos baixos. Pararam a meio da marginal e enfrentaram-se como inimigos em que se estavam a tornar. Empurraram-se com força. Avançaram assim pela rua, aos empurrões, bêbados de raiva. As vozes levantaram-se sem darem por isso, porque já não se ouviam. Palavras que quiseram dizer e que nunca poderiam ter sido ditas se fosse amor. Em casa, cega de raiva, atirei-lhe uma bofetada à cara. Não tive tempo de saborear o gosto desse gesto violento, instantaneamente senti a minha cabeça a rodopiar com o impacto da sua mão na minha cara e logo a seguir outra. Caí sobre a cama e ele caiu sobre mim. Perdi a conta às vezes que nos batemos. Não se podia descer mais baixo. Era o fim de tudo. Nessa noite fiz sozinha uma viagem de regresso, em solilóquio a ensinar-me o que fazer depois. Sinto mais viva do que nunca a vergonha daquele dia, só isso. Nada que possa ser lamentado, foi um erro, um dos muitos que cometi. Desta mulher excessiva não me posso despedir, levo-a comigo para onde for, preciso dela para a solução que encontrei.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

365 dias depois

365 dias depois

            O autocarro 42 entrou na garagem, os passageiros que, como eu, esperavam na linha 6 começaram a levantar-se, a juntar as suas coisas e a encaminharem-se para a zona de embarque. Ninguém parecia ter muita pressa, eu também não. Tenho todo o tempo da minha vida para fazer esta viagem. Ninguém sabe, desta vez não me quis precipitar. Ponderei muito bem e a minha decisão está tomada, sei que não vou recuar e que vou ser bem sucedida.
            Subo os degraus do autocarro, apresento o bilhete ao motorista que não me olha. Somos indevassáveis. Se ele soubesse… talvez um dia venha a ouvir falar do meu caso e nunca o consiga ligar a esta mulher cuidadosamente arranjada que lhe estendeu um bilhete para ele picar. Não pode saber o significado deste bilhete, o princípio de uma viagem arriscada e estranha. Como poderia saber? Não trazemos as nossas resoluções pintadas na testa, com uma seta luminosa a piscar… Caminho lentamente pelo corredor até encontrar um lugar vago junto à janela, rezo para que o autocarro não encha, não quero companhia. Gosto de me isolar dos outros durante a viagem, olhar pelo vidro, ver as paisagens desfiadas nos meus olhos, imaginar vidas e compor histórias. Não suporto o convívio forçado em espaços exíguos, a boa educação dos sorrisos de conveniência, as convenções sociais, mas volto-me toda para o exterior e nunca, como em viagem, me interesso tanto pelos outros. Isso faz com que prefira viajar de noite. Ver as luzes das casas acesas, vislumbrar um toque da decoração, um vulto furtivo numa janela, reconhecer espaços: cozinha, sala quarto, cozinha, sala, quarto. Agradeço às pessoas que deixam as cortinas afastadas. No entanto, interesso-me como quem se interessa por uma abstração, é um exercício mental que não carece de reciprocidade. Não quero conhecer aquelas pessoas.
            Encontrado o lugar, arrumo o pequeno saco no compartimento em cima. Está quase vazio, uma carteira, os meus documentos – vou precisar deles – uma garrafa de água. Oiço as conversas que me rodeiam nitidamente, mas ninguém me dá mais atenção do que a que quero e que é a que merece uma mulher que viaja sozinha. Com cuidado, arrumo-me no assento. O meu corpo que vem recuperando lentamente acusa o esforço, doem-me ainda certos movimentos, ainda me sinto presa. Foi uma convalescença difícil e muito demorada. Estive tão maltratada, tão ferida. A autonomia de que disponho hoje é-me preciosa, gosto de me sentir livre outra vez. Recosto-me e volto a ajeitar-me à procura de um conforto que não pode ser total, mas encontrei-o. Estou instalada e sem querer solto um suspiro profundo que estava entalado no meu peito. Liberto-me. Tiro um pequeno aparelho do bolso, ponho os fones, e a música de Chopin, noturna, enche-me os ouvidos. Para além do prazer do meu compositor favorito, afastarão quem quiser meter conversa.
            Sinto o autocarro estremecer enquanto, lento, se põe em movimento. O motorista manobra com cuidado no espaço apertado da garagem. Quando sai para o sol quente da tarde, a luminosidade conforta-me. Olho pelo vidro e vejo os carros parados na faixa contrária. Uma mulher jovem fala com exuberância, ri e gesticula. Está ao telefone, vejo o fio do auricular. Parece louca numa cela de isolamento, alienada. É bonita. As árvores do espaço que separa as faixas de rodagem têm o tronco escuro, muito escuro, a folhagem pouco densa e as campânulas violáceas lançam na rua uma miríade de sombras que os transeuntes procuram para se aliviar do calor sufocante. Digo mentalmente o nome das árvores, porque sempre gostei da sonoridade: jacarandás. E a palavra faz-me viajar para um sítio distante, exótico. Não parecem de cá, os jacarandás, mas abundam nas ruas desta cidade.
O autocarro avança devagar, como eu gosto, e eu observo avidamente a vida que se desenrola à minha frente, como se estivesse num filme anacronicamente mudo e impossivelmente tecnicolor, o som do piano acentua a inverosimilhança. Dois jovens parados no passeio beijam-se carinhosamente. Têm um ar tão jovem, ainda são uma promessa e enterneço-me com aquele amor despretensioso, sem querer ser ostensivo. São bonitos assim na fotografia que lhe tiro com a minha retina. Não quero saber do negativo da imagem, fico-me pela fotografia revelada. Deixo-os para trás, não me volto para os olhar, porque já atento noutro quadro.
            É o amor outra vez. Um casal de idade avança devagar pelo passeio. É nítida a atenção que ele lhe dispensa, pelo modo discreto como lhe segura o braço, ela tem mesmo um ar de porcelana fina, de loiça antiga de boa qualidade. Está criteriosamente arranjada. Deve ter sido muito, muito bonita, porque ainda é. O penteado lembra os anos setenta, num apanhado muito bonito, veste uma blusinha branca que é toda uma sugestão de leveza e frescura, a saia de pintinhas azuis é definitivamente acertada para o seu figurino. Leva na mão uma flor (rosa?), talvez de um tom marfim. Tudo compõe este quadro delicado. Entram numa pastelaria que combina com eles. Ele dá-lhe a passagem com o charme que me transporta para um filme antigo. Já os imagino a tomarem chá, talvez à inglesa, talvez de propósito haja scones. À noite vão sair, o tempo vai estar maravilhoso e eles vão a um recital, tem de ser um recital de música clássica, a peça há de ser de Schumann e a imagem de Clara pairará nas notas musicais. E mais uma vez me enterneço.

            Regresso a mim, volto a ver o mundo concreto lá fora e suspendo o meu devaneio. Sou surpreendida pela zona da cidade onde o autocarro se imobilizou na longa fila para um semáforo. Olho pelo vidro e vejo uma rapariga muito jovem que deixei ali há tantos anos. Ela vem até mim sem eu querer, a minha memória devolve-ma tão concreta que quase lhe podia tocar. Deixo que as recordações fluam e viajo no tempo e aqueço-me naquela lembrança.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Horóscopo de novembro (Fim)

            Não nos deixar cair em tentação… mas porquê? Quedas, dores, fracassos e tentações, as faces do autoconhecimento. Quando caímos em tentação, sabemos de antemão que vamos sofrer. E quando passamos a vida sem cair em tentação, não sofremos de coisas bem piores, desta náusea que o nosso poeta maior tão bem versejou? Como quero sofrer? De abulia? Ou conhecer um vislumbre de felicidade, mesmo que depois seja a queda livre? Cair em tentação, segundo a maga que lhe lia o destino, era subir uns degraus na Grande Montanha, mas pelo caminho mais espinhoso e doloroso. Ora bolas! Melhor os conselhos para seguir uma alimentação saudável do que este somatório de clichés. Ah, sim?! Então porque continuas a a ler? Porque assim subo a Grande Montanha a voar, pois não hei de errar mercê destes valiosos conselhos. Porque há os que gostam de caminhar calmamente até lá acima. Os que caem na tal tentação arriscam a vertente escarpada e as quedas livres. Parece bem mais picante. Pois que seja – continuava a leitura da previsão – a verdade é que todos os caminhos vão dar a Roma, ou seja, ao Céu. (!?) O Mago recorda-lhe que tem tudo latente em si. Era muito sábio aquele Mago, ou seria apenas um ente atento que sabe que é sempre assim? Não há circunstâncias certas nem perfeitas – verdade – há uma tomada de consciência que acontece em qualquer altura da vida. A sua tinha-a a levado ao horóscopo, ou tinha sido o horóscopo a levá-la à tomada de consciência? Parece que a epifania se propiciava nos casos de dor forte, circunstância que leva fatalmente à compreensão de que é preciso querer mais. Ora ali estava a chave epigramática do seu horóscopo de Novembro, ela queria mais, a mediania não era para ela, vamos, vamos, vamos (estava assim na previsão).
Finalmente, a previsão que ela esperava que viesse ao seu encontro: atenção ao dia de hoje, aguarda-a uma surpresa inesperada – claro que sim, se fosse esperada não era surpresa, toda a gente sabe como é difícil fazer festas surpresa. E ela, com algum ceticismo, pôs-se literalmente a olhar em volta de soslaio como se houvesse por ali uma surpresa guardada por alguém a pontos de saltar e tornar real aquele horóscopo tão simpático que havia de colorir o seu domingo cinzento, a sua vida de mediania, de compensar a sua opção pela comida saudável, a ousadia em ter deixado de fumar. Sim, afinal havia alguma justiça cósmica e estava a ser direcionada para si. Os planetas alinhavam-se, resolviam as suas tensões, as quadraturas eram as mais propícias, a Lua, estava a entrar na casa de Aquário, Saturno recuava e Vénus triunfava. Era hoje! Mas não para já que os filhos estavam a entrar em casa e o marido também, portanto o cosmos teria que esperar para corrigir a sua trajetória.

Mais tarde, nesse domingo, teve que dar razão ao cosmos: sem que ela pedisse, os filhos tinham posto a loiça na máquina e tinham-na posto a lavar e ela não teve que dizer nada. Nunca, nunca mais desdenharia o horóscopo. Ansiava pelo horóscopo de Dezembro.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Horóscopo de novembro (II)

        Entre divertida e desalentada continuou a leitura. Incomodava-a aquela sensação de insatisfação. O desejo de viver uma reviravolta, de se emocionar, de vibrar. Enterrar a estranheza que lhe vinha da sensação de que na sua vida não havia tempo para a vida. Sem resistir continuou a percorrer as diferentes janelas da página astral. Um desejo infantil de que naquele arrazoado sem lógica lhe fosse apontado um caminho, se abrisse uma porta, de que uma centelha pudesse ser avistada e depois acarinhada e depois alimentada e que crescesse e que a vida fosse plena, fremente. Que dali crescesse um fogo destruidor. Que ela pudesse renascer das cinzas. Mais uma previsão que ela conseguiu adaptar ao seu estado de espírito: uma quadratura (relação de tensão) da Lua com Mercúrio pode trazer-lhe alguma confusão (mais!?) em termos de ideias ou simplesmente perda de lucidez. E isto era uma promessa ou uma ameaça. Dada a sua abulia, podiam ser as duas coisas ao mesmo tempo, ameacem-me com uma promessa, é disso que eu preciso. Quem dera perder a lucidez, agir irresponsavelmente, não ponderar, não calcular, não medir, não planear, não se prender em teias que se iam, que ia, tecendo à sua volta e nas quais se via cada vez mais enredada. Sim, sim, queira deus que a Lua vá de encontro a Mercúrio e que daí resulte um choque cósmico capaz de a abalar. Agora, só com um choque cósmico é que lá conseguia chegar.
            Entretanto, já outro mentor apontava soluções que nunca teriam ocorrido a pessoas de bom senso. Um entre aqueles que ela desdenhava, mas continuava a ler, enfeitiçada, encontrando sinais que lhe permitiam interpretar a sua existência à luz de oráculos que o acaso lhe punha à frente, atribuindo sentidos a palavras que navegavam no mundo virtual para que mulheres crédulas e incrédulas as procurassem e nelas se vissem refletidas – a menos que não fumassem, porque uma das recomendações não fazia sentido para todas elas (ver acima). Este alertava para a sensibilidade em relação a tudo o que a rodeava – verdade – sobretudo em relação às milhentas tarefinhas que sempre a esperavam: arrumar, preparar, organizar, verificar… oh, oh, dizia que facilmente se apercebia do estado de espírito das outras pessoas, disto não duvidava, filhos e marido estavam sempre num estado de espírito que os convidava a esperar que a iniciativa partisse dela. Isso ela sabia. Acrescentava a possibilidade de sentir necessidade de manter secretos os sentimentos, conselho inteligente, sem dúvida, porque era de todo inconveniente que se soubesse que ela vivia presa de uma impaciência tão grande que a sufocava. Quanto à hipótese de sentir maior necessidade de, nesta fase, passar mais tempo com as pessoas que lhe são queridas, foi a primeira escorregadela que viu naquele horóscopo de novembro. E se, pelo contrário, a sua urgência fosse passar tempo longe das pessoas que lhe eram queridas? Que leituras não se fariam se ela verbalizasse essa fome de solidão. Pode a solidão ser uma necessidade? Pode.

            Uma vez mais, foi salva por um clique, mudou de página e viu-se na eminência de ter que seguir uma vida saudável, sob pena de ter um dia difícil de não poder controlar as emoções. Era melhor era, não fosse o dique romper-se de vez e ela nunca mais conseguir encontrar aquele equilíbrio delicado feito de pés em pontas (mas as bailarinas dançam em pontas…). Nada como controlar as emoções, um bom conselho viesse ele de onde viesse. Este guru avisava-a agora, só agora, de que a semana ia ser de grande exigência. Se os astros soubessem, se olhassem mais para os homens comuns e anónimos cá em baixo, não vaticinariam tantas evidências – todas as semanas são exigentes, duras, violentas e, ainda assim, é preciso cavalgá-las como quem equilibra um barco na crista da onda, afastando-o do naufrágio.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Horóscopo de novembro

Horóscopo de Novembro

            Era domingo, o primeiro domingo do mês de Novembro. Estava sozinha em casa, um bocadinho sozinha, momento raro. Como sempre acontecia nessas horas, pelas quais ansiava nos dias de semana, sentia-se um pouco perdida, sem norte. Aquela urgência de preencher espaços em branco. Muitas vezes acabava na cozinha, escondendo no prazer de cozinhar o medo de estar consigo mesma. Naquele domingo fugiu de si sem ir para a cozinha. Ligou o seu computador e começou a correr as páginas. Abriu, por inércia, a página do horóscopo. Procurou o seu signo. Sorriu perante as opções: horóscopo diário, horóscopo semanal, horóscopo mensal e horóscopo amoroso. Meu Deus, que falha, porque não havia um horóscopo quinzenal? Foi clicando, foi lendo os vaticínios que a esperavam: cuidado com a saúde, não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti, Saturno em linha com a Lua, trânsito de Vénus. Abriu o separador para a leitura mensal.
            Com o eclipse solar a decorrer na sua casa de carreira, Novembro será um mês trabalhoso e intenso, em que vai ter que lidar com muita informação e vai ter que encontrar a melhor maneira de a gerir. Chefes conscienciosos vão lá estar para dar uma ajuda e apoio à margem, colegas fantásticos irão guiá-lo quando as coisas se tornarem pesadas. Uma das características deste mês vai ser a necessidade de processar informação que tinha ficado enterrada no passado, que poderá ter a ver com a pessoa que ama. Risco de alguma perturbação sentimental, com desfecho surpreendente e algo agressivo. Um novo amor tende a surgir e dará início a um excelente período. Esta é a carta da apatia, do tédio, da área cinzenta, do mau humor. Na saúde (e na doença?), estão favorecidos os tratamentos ortopédicos. Para garantir um bom ritmo intestinal, é muito importante beber cerca de dois litros de água ao longo do dia, o que equivale a dez ou doze copos (de que tamanho?). Se o tabaco ainda é um dos seus vícios sagrados, ouse em o reduzir fortemente (e os erros de português, também podemos ousar em os reduzir?). “Não espere uma crise para descobrir o que é importante na sua vida” (Platão) (Assim mesmo!). E havia mais do mesmo género: desde a leitura das cartas – e nunca eram as mesmas – ao trânsito de planetas, asteróides e estrelas de variadíssimo tamanho e importância, aos conflitos entre Úrano e Saturno, sem qualquer referência à Terra, passando pelo oráculo da saúde, da cabeça aos pés.
            Nisto, ela deteve-se numa frase que dizia que havia a possibilidade de um amor do passado regressar, trazendo desenvolvimentos emocionantes. Um amor do passado? Neste momento da sua vida, todos os amores lhe pareciam do passado e seria bom que todos conhecessem desenvolvimentos emocionantes. Sabemos que estamos a morrer, ou pelo menos que já não estamos na Primavera da vida, ou que já é Outono, quando começamos a olhar para nós e tomamos consciência de que são mais as coisas que já não poderemos fazer do que aquelas que nos falta fazer. A vida, quando se é jovem - muito jovem - é um imenso mar de possibilidades. Podes mudar de rumo, de profissão, de namorado, de país, de religião, de sexo. A mudança está lá, latente, fervente. Depois, começas a fazer as opções, porque viver é optar e, sem saberes, foste eliminando uma série de hipóteses. É isto. Optar é igual a eliminar. Escolhes uma área de especialização, tens que esquecer a outra. Se queres ser Arqueóloga, não poderás ser Física Teórica. Apaixonaste-te por uma pessoa e casaste, em princípio, não convém que te apaixones outra vez, pelo menos, que não te apaixones muitas vezes. Tiveste filhos, não podes sair à noite. Não podes sair à noite, não podes rir das farras com os teus amigos, com quem não saíste à noite. Os filhos precisam de ti, não podes aceitar aquela oportunidade de trabalho na Austrália que tem a tua cara. Mas, podes olhar todos dias para a cara dos teus filhos e decidires que estás no lugar certo. A Austrália, tanto quanto se sabe também não vai sair do seu lugar por muitos anos. Queres controlar a tua fertilidade, tens menos prazer e liberdade no sexo, pelo menos tens de pensar se é seguro naquele dia. Outra coisa que vem com os filhos é que já não pode ser onde e quanto te apetece. Começas, mesmo que não queiras, a lembrar-te daquelas vezes em que foi tão bom perder a cabeça. Não queres pensar, tomas a pílula. Tomas a pílula, lá se vai a libido, logo tens menos vida sexual. De repente, mesmo que queiras, não podes ter mais filhos. Nunca mais sentirás um corpo a mexer dentro do teu, nunca mais pegarás numa mão frágil como pétalas de flores e a vais acariciar com tanto cuidado, porque tens medo que se quebre entre os dedos. Engordaste, tens celulite. Emagreceste, perdeste firmeza. Engordaste outra vez, tens ainda mais celulite e mais flacidez. E não é preciso continuar, está-se mesmo a ver onde é que estas contas vão parar. Tanto num caso como noutro, há biquínis que não vais poder usar, isto se mantiveres o sentido do ridículo. Se o tiveres perdido, porque recusas que as possibilidades são cada vez menos, sendo ridícula, perdes a hipótese de te levarem a sério. Ás vezes, apetece mesmo que não nos levem a sério, noutras dá jeito. O teu rosto ganha novas curvas, são rugas. Se compras cremes para as rugas, é porque já não podes comprar creme para a acne.

Entre estas escolhas está a vivência do amor. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Um dia como os outros (Fim)

        Na rua, atravessou o pátio, o cão aproximou-se dela e ganiu baixinho. Ela baixou-se, acariciou-lhe a cabeça com força, envolveu o focinho nas mãos e amou-o sentidamente. O cão ganiu de novo, mas ela afastava-se e o animal ficou especado no meio do pátio, a cabeça baixa, sem desviar os olhos, mas ela já não viu. Saiu para a rua e voltou a inspirar com força. Contornou a casa e percorreu o baldio que ficava nas traseiras. Em pouco tempo chegou ao poço antigo, afastou a prancha de madeira, solta, que tapava a boca e olhou lá para dentro. O cheiro húmido atingiu-a. O poço estava meio cheio. Via-se o espelho de água imóvel, muito escuro. Não era possível ver o fundo, mas ela sabia que a profundidade era grande. Era um daqueles poços que cada família construía há uns anos, as paredes exteriores estavam cobertas de musgo e verdete, a superfície era rugosa, áspera. Lá dentro, as paredes eram lisas e cinzentas, com um aspecto lavado. Ela fechou os olhos e continuava a saber que era ela que ali estava, pousou as mãos em cima do parapeito e deixou que uma onda de si mesma a submergisse. Viu-se todos os dias a fazer a mesma coisa e todos dias cada vez mais mais fora de si. Viu-se estrangeira perante os outros. Viu-se cansada, cansada, cansada. Sabia que não podia desistir, que não podia descansar de si mesma. Se pudesse podia ser que aquele peso no peito fosse suportável. Mas não era.
            Não sabia quando é que tinha tomado a decisão, não o podia explicar. Naquela manhã, quando abriu os olhos sabia exatamente o que ia fazer, como se fosse mais uma tarefa na ordem do dia. Sem receio, sem susto, com precisão, dobrou-se sobre o parapeito, sentiu os pés a levantarem-se do chão, sentiu o corpo a deslizar pela parede. Perdeu o controlo, caiu. A água muito fria impediu-a de respirar e o corpo submergiu entre um chuá que deixou um eco estranho, uma agitação branca que respingou nas paredes… e mais não se sabe, só se imagina.

            Daí a pouco, o marido e os filhos chegariam para almoçar, como noutro dia qualquer.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Um dia como os outros (III)

            Torceu a boca. Estava na hora de preparar o almoço. Sacudiu a estranheza e a angústia que, de tão pequenina, caiu ao chão e já ninguém a podia encontrar. Foi para a cozinha e voltou a esquecer-se de si.
            Abriu o frigorífico, tirou os legumes. Descascou, lavou, partiu, deitou na panela, acendeu o fogo. A sopa estava preparada. Tirou os bifes, bateu-os, aqueceu a frigideira, deitou alho e louro, azeite e manteiga em partes iguais, deitou os bifes e não ouviu o estalar que fizeram. Não sentiu o cheiro que começou a encher a cozinha. Pensava apenas que, quando juntasse os temperos que faltavam, podia preparar o arroz e depois a salada. Pôs a mesa. Escolheu a toalha azul, aquela que combinava com a louça, apetecia-lhe ser mais cuidadosa. Dispôs a loiça e os talheres com precisão matemática. Estava tudo pronto para o almoço deles. Mentalmente contou os lugares, eram quatro. Estava certo.

            Saiu para a rua, inspirou, o sol tinha rompido as nuvens e o brilho frio do dia de inverno confortou-a, o vento agitou-lhe os cabelos. Sentou-se um bocadinho a sentir aquele sol. Eles estavam quase a chegar. Tinha preparado tudo com antecedência, estava tranquila. Meticulosa em tudo, sabia que não podia distrair-se com o tempo, não queria correr o risco de ser surpreendida agora que a determinação crescia dentro dela. Uma nuvem escondeu o sol. Ficou frio e ela sentiu-se desconfortável. Despertou, descobriu-se em si, viva, palpitante, segura, consciente. Sentiu-se coincidente, estava nos gestos inéditos que se haviam de seguir. Deixou de funcionar em automático, deixou de estar ausente. Estava dolorosamente ali. Sabia, como se se olhasse a um espelho, da ruga vincada na testa, dos olhos baixos e fixos, do amadurecimento do corpo, da ausência da alma, da cratera vazia que era a sua vontade, da estranheza que lhe embotava os sentidos. Como se nascesse de novo, levantou-se. Reentrou em casa, percorreu cada divisão, inventariando a ordem, os objetos, as cores, o silêncio. Tinha deixado o seu mundo em ordem, mais uma vez, cada coisa ocupava o seu lugar, sabê-lo encheu-a de prazer. Agora via as coisas, que surgiam duras, concretas, dimensionadas no espaço. Entrou por último na cozinha e os cheiros atingiram-na, inspirou e dissecou-os: alho, louro, primeiro, depois o cheiro da sopa e como última nota o cheiro da limpeza. Era um dia como os outros. Saiu, deitando o último olhar sobre as coisas.