Essa foi a ironia com a qual não contei. Na verdade, acabei por ser
salva. A queda foi amortecida pelas piteiras, pelos arbustos lenhosos que
crescem nesta encosta quase a pique. Fiquei ali, como uma lâmpada cuja ligação
elétrica tem intermitências. Oscilando entre a consciência e a inconsciência. Soube
depois do meu resgate, de um salvamento impressionante de dedicação e resistência
ao perigo. Soube depois de procedimentos médicos que evitaram que perecesse. Soube
depois do longo tempo em que permaneci num coma induzido. Soube depois que não
ter morrido significava uma nova vida, podia recomeçar, podia tentar. Soube muito
depois que não iria conseguir. Debati-me durante meses com uma sensação de
irrealidade, como se tivesse ficado lá e de lá pudesse ver o que foi
acontecendo comigo. Não fui capaz de enfrentar a astenia da minha vontade. O
tempo passou a arrastar-se demasiado penosamente e todos dias era tentada pelo
pensamento de lamentar que tudo não tivesse terminado ali. Dei-me conta do
esforço dos outros à minha volta, dos olhares discretos, das meias palavras. O
cuidado que punham na maneira como lidavam comigo era palpável, colava-se-me à
pele como suor de verão. Cansavam-me as tentativas dos outros para que eu
percebesse a sorte que tinha tido (sorte, a palavra é de uma ironia atroz),
onde eles viam sorte, eu via um lamentável erro, uma brincadeira de alguém com
um sentido de humor muito negro. Eu não queria viver. Eu tinha morrido para mim
naquele dia. O que restava eram coisas que fazem um corpo: pele, unhas, cabelo,
órgãos a funcionar, a cumprirem uma função biológica tecida na memória
ancestral que faz com não consigamos deixar de respirar. Eu já não estava ali.
Desde aquele dia malogrado eu estive sempre aqui, perplexa com o meu ato
falhado. Por isso, estou aqui.
Estou serena. Trezentos e sessenta e cinco dias serviram para amadurecer
esta resolução. Venho devolver o que daqui foi retirado. Venho encontrar-me
comigo que me deixei aqui, sozinha, a vaguear sem corpo, à espera desta devolução
para poder ir. Até onde os meus olhos alcançam, mar, mar, mar. Aqui quero ser
sepultada. Quero deixar que este elemento líquido me envolva, me submerja, me inume.
Não quero outro epitáfio senão a espuma das ondas sobre mim. Não quero outras lágrimas
senão as da chuvas que vierem. Nem outros suspiros senão os dos ventos
distantes. É preciso que se saiba que não tenho medo, nem da dor, nem do que
está um pouco para além disso e que não sei o que é. O desconhecido que está à
minha frente é menos aterrador do que o conhecido que tenho atrás de mim.
Desço um pouco mais, há um ponto no precipício que sobressai como uma
plataforma sobre o mar, é para ali que tenho que ir. Procuro o melhor ângulo. Graças
ao terraço rochoso que se abre sobre o vazio, o meu vulto fica invisível da
praia. Não quero alarmismos, seria demasiado arriscado. Fica de mim este gesto
calculado, pensado e estranho. Até para mim é um mistério. Uma força poderosa
impeliu-me para aqui. Abro os braços. Mergulho no vazio, rezando pelo fim. Vivo
um derradeiro sopro de vida e de liberdade. É o livre arbítrio. Fui.
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