segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

365 dias depois (Fim)

Essa foi a ironia com a qual não contei. Na verdade, acabei por ser salva. A queda foi amortecida pelas piteiras, pelos arbustos lenhosos que crescem nesta encosta quase a pique. Fiquei ali, como uma lâmpada cuja ligação elétrica tem intermitências. Oscilando entre a consciência e a inconsciência. Soube depois do meu resgate, de um salvamento impressionante de dedicação e resistência ao perigo. Soube depois de procedimentos médicos que evitaram que perecesse. Soube depois do longo tempo em que permaneci num coma induzido. Soube depois que não ter morrido significava uma nova vida, podia recomeçar, podia tentar. Soube muito depois que não iria conseguir. Debati-me durante meses com uma sensação de irrealidade, como se tivesse ficado lá e de lá pudesse ver o que foi acontecendo comigo. Não fui capaz de enfrentar a astenia da minha vontade. O tempo passou a arrastar-se demasiado penosamente e todos dias era tentada pelo pensamento de lamentar que tudo não tivesse terminado ali. Dei-me conta do esforço dos outros à minha volta, dos olhares discretos, das meias palavras. O cuidado que punham na maneira como lidavam comigo era palpável, colava-se-me à pele como suor de verão. Cansavam-me as tentativas dos outros para que eu percebesse a sorte que tinha tido (sorte, a palavra é de uma ironia atroz), onde eles viam sorte, eu via um lamentável erro, uma brincadeira de alguém com um sentido de humor muito negro. Eu não queria viver. Eu tinha morrido para mim naquele dia. O que restava eram coisas que fazem um corpo: pele, unhas, cabelo, órgãos a funcionar, a cumprirem uma função biológica tecida na memória ancestral que faz com não consigamos deixar de respirar. Eu já não estava ali. Desde aquele dia malogrado eu estive sempre aqui, perplexa com o meu ato falhado. Por isso, estou aqui.
Estou serena. Trezentos e sessenta e cinco dias serviram para amadurecer esta resolução. Venho devolver o que daqui foi retirado. Venho encontrar-me comigo que me deixei aqui, sozinha, a vaguear sem corpo, à espera desta devolução para poder ir. Até onde os meus olhos alcançam, mar, mar, mar. Aqui quero ser sepultada. Quero deixar que este elemento líquido me envolva, me submerja, me inume. Não quero outro epitáfio senão a espuma das ondas sobre mim. Não quero outras lágrimas senão as da chuvas que vierem. Nem outros suspiros senão os dos ventos distantes. É preciso que se saiba que não tenho medo, nem da dor, nem do que está um pouco para além disso e que não sei o que é. O desconhecido que está à minha frente é menos aterrador do que o conhecido que tenho atrás de mim.

Desço um pouco mais, há um ponto no precipício que sobressai como uma plataforma sobre o mar, é para ali que tenho que ir. Procuro o melhor ângulo. Graças ao terraço rochoso que se abre sobre o vazio, o meu vulto fica invisível da praia. Não quero alarmismos, seria demasiado arriscado. Fica de mim este gesto calculado, pensado e estranho. Até para mim é um mistério. Uma força poderosa impeliu-me para aqui. Abro os braços. Mergulho no vazio, rezando pelo fim. Vivo um derradeiro sopro de vida e de liberdade. É o livre arbítrio. Fui.

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