Torceu a boca.
Estava na hora de preparar o almoço. Sacudiu a estranheza e a angústia que, de
tão pequenina, caiu ao chão e já ninguém a podia encontrar. Foi para a cozinha
e voltou a esquecer-se de si.
Abriu o frigorífico, tirou os
legumes. Descascou, lavou, partiu, deitou na panela, acendeu o fogo. A sopa
estava preparada. Tirou os bifes, bateu-os, aqueceu a frigideira, deitou alho e
louro, azeite e manteiga em partes iguais, deitou os bifes e não ouviu o
estalar que fizeram. Não sentiu o cheiro que começou a encher a cozinha.
Pensava apenas que, quando juntasse os temperos que faltavam, podia preparar o
arroz e depois a salada. Pôs a mesa. Escolheu a toalha azul, aquela que
combinava com a louça, apetecia-lhe ser mais cuidadosa. Dispôs a loiça e os
talheres com precisão matemática. Estava tudo pronto para o almoço deles.
Mentalmente contou os lugares, eram quatro. Estava certo.
Saiu para a rua, inspirou, o sol
tinha rompido as nuvens e o brilho frio do dia de inverno confortou-a, o vento
agitou-lhe os cabelos. Sentou-se um bocadinho a sentir aquele sol. Eles estavam
quase a chegar. Tinha preparado tudo com antecedência, estava tranquila.
Meticulosa em tudo, sabia que não podia distrair-se com o tempo, não queria
correr o risco de ser surpreendida agora que a determinação crescia dentro
dela. Uma nuvem escondeu o sol. Ficou frio e ela sentiu-se desconfortável.
Despertou, descobriu-se em si, viva, palpitante, segura, consciente. Sentiu-se
coincidente, estava nos gestos inéditos que se haviam de seguir. Deixou de
funcionar em automático, deixou de estar ausente. Estava dolorosamente ali.
Sabia, como se se olhasse a um espelho, da ruga vincada na testa, dos olhos
baixos e fixos, do amadurecimento do corpo, da ausência da alma, da cratera
vazia que era a sua vontade, da estranheza que lhe embotava os sentidos. Como
se nascesse de novo, levantou-se. Reentrou em casa, percorreu cada divisão,
inventariando a ordem, os objetos, as cores, o silêncio. Tinha deixado o seu
mundo em ordem, mais uma vez, cada coisa ocupava o seu lugar, sabê-lo encheu-a
de prazer. Agora via as coisas, que surgiam duras, concretas, dimensionadas no
espaço. Entrou por último na cozinha e os cheiros atingiram-na, inspirou e
dissecou-os: alho, louro, primeiro, depois o cheiro da sopa e como última nota
o cheiro da limpeza. Era um dia como os outros. Saiu, deitando o último olhar
sobre as coisas.
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