Na rua,
atravessou o pátio, o cão aproximou-se dela e ganiu baixinho. Ela baixou-se,
acariciou-lhe a cabeça com força, envolveu o focinho nas mãos e amou-o
sentidamente. O cão ganiu de novo, mas ela afastava-se e o animal ficou
especado no meio do pátio, a cabeça baixa, sem desviar os olhos, mas ela já não
viu. Saiu para a rua e voltou a inspirar com força. Contornou a casa e
percorreu o baldio que ficava nas traseiras. Em pouco tempo chegou ao poço
antigo, afastou a prancha de madeira, solta, que tapava a boca e olhou lá para
dentro. O cheiro húmido atingiu-a. O poço estava meio cheio. Via-se o espelho
de água imóvel, muito escuro. Não era possível ver o fundo, mas ela sabia que a
profundidade era grande. Era um daqueles poços que cada família construía há
uns anos, as paredes exteriores estavam cobertas de musgo e verdete, a
superfície era rugosa, áspera. Lá dentro, as paredes eram lisas e cinzentas, com
um aspecto lavado. Ela fechou os olhos e continuava a saber que era ela que ali
estava, pousou as mãos em cima do parapeito e deixou que uma onda de si mesma a
submergisse. Viu-se todos os dias a fazer a mesma coisa e todos dias cada vez
mais mais fora de si. Viu-se estrangeira perante os outros. Viu-se cansada,
cansada, cansada. Sabia que não podia desistir, que não podia descansar de si
mesma. Se pudesse podia ser que aquele peso no peito fosse suportável. Mas não
era.
Não sabia quando é que tinha tomado
a decisão, não o podia explicar. Naquela manhã, quando abriu os olhos sabia
exatamente o que ia fazer, como se fosse mais uma tarefa na ordem do dia. Sem
receio, sem susto, com precisão, dobrou-se sobre o parapeito, sentiu os pés a
levantarem-se do chão, sentiu o corpo a deslizar pela parede. Perdeu o
controlo, caiu. A água muito fria impediu-a de respirar e o corpo submergiu
entre um chuá que deixou um eco estranho, uma agitação branca que respingou nas
paredes… e mais não se sabe, só se imagina.
Daí a pouco, o marido e os filhos
chegariam para almoçar, como noutro dia qualquer.
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