A Fotografia
Estava pouca gente na estação de
comboio. Sentada num dos bancos, olhava em volta desinteressada. Tinha sido
mais um dia de trabalho, sentia-se cansada e não se focava particularmente em
nada. O seu olhar vogava como um beija-flor, pousando aqui e ali muito
rapidamente. Ouviu ao longe o ruído metálico do comboio sobre os carris e
ergueu-se, aproximou-se da linha amarela, sem a pisar, nem um centímetro mais, tinha
aquele receio inconsciente. O comboio imobilizou-se e ouviu-se o ruído característico
dos freios, as portas abriram-se como quem suspira alto e as pessoas começaram
a sair – muitas, cansadas, incaracterísticas – de regresso a casa, também de um
dia cansativo. Rostos impenetráveis passaram por ela, corpos apressados e
tensos tocaram-na impercetivelmente. Mais um dia…
Como viajava sempre em
contracorrente, o comboio estava praticamente vazio. Escolheu um lugar junto à
janela, como era da sua preferência. Ouviu-se o apito a avisar o fecho das
portas e um vulto pardo esgueirou-se rapidamente para dentro da carruagem.
Talvez por causa da pressa, sentou-se inesperadamente ao seu lado. Como estava
distraída não o reconheceu logo, só reparou quando ele a cumprimentou. Sorriu
com surpresa, conhecia-o. Eram colegas de trabalho, não íntimos, nem sequer
muito próximos, mas tinham estabelecido os laços que duas pessoas bem-educadas
mantêm por cortesia. Acenos delicados, algumas palavras de circunstância
trocadas numa pausa, comentários superficiais sobre assuntos efémeros de que
não conseguiria lembrar-se mesmo que fizesse um esforço. Saber-se junto a um
conhecido incomodou-a como a chuva ao Alberto Caeiro, era como ter um pé
dormente. Agora não poderia submergir como sempre fazia na viagem de regresso,
agora seria obrigada a manter com ele uma atenção forçada para sustentar o
aspecto da pessoa bem-educada que realmente era.
Ele falava-lhe da surpresa de a
encontrar ali. Era assim todos os dias? Morava para os lados da cidade? Em que
zona? Era interessante que viajassem todos os dias na mesma direção, na mesma
linha, e nunca se terem encontrado. Afinal o mundo talvez não fosse assim tão
pequeno como se insistia em estar sempre a dizer. A voz dele era muito mais
agradável do que já tinha alguma vez reparado, era até muito mais agradável do
que lhe apetecia que fosse naquelas circunstâncias em que gostava de estar
sozinha. Viu-se a sorrir com gosto. Ele reparou no livro que ela segurava, O amor nos tempos de cólera, disse que
já o tinha lido, perguntou-lhe sobre as suas impressões de leitura, comentou aquela
forma de amar feita de uma lealdade e de uma entrega inabaláveis que suportavam
uma espera que durava até à velhice avançada para se concretizar, acrescentou
que, apesar de o livro ser uma obra prima, aquele amor lhe parecia exacerbado,
pouco credível, ficção. Riu-se e era um riso grave, surdo, profundo que a
encantou. Mas o que era aquilo, agora dava-lhe para reparar no homem, para avaliar
a sensação de calor tépido que a presença dele lhe ia imprimindo nos sentidos.
Ele ia fazendo as despesas da conversa, agora ia tecendo comentários sobre a
escrita de Gabriel Garcia Marquez. Tinham ambos lido os livros do autor do
realismo fantástico. Deve ter sorrido inconscientemente, porque ele lhe
perguntou de que se ria, se não tinha gostado de O general no seu labirinto. Apressou-se a desfazer o mal entendido,
disse qualquer coisa que teve a certeza de ter sido bastante disparatada e
sentiu-se a fazer má figura. Concentra-te, concentra-te, mantém a boa imagem,
não ajas como a tola que não és.