quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A fotografia

A Fotografia


            Estava pouca gente na estação de comboio. Sentada num dos bancos, olhava em volta desinteressada. Tinha sido mais um dia de trabalho, sentia-se cansada e não se focava particularmente em nada. O seu olhar vogava como um beija-flor, pousando aqui e ali muito rapidamente. Ouviu ao longe o ruído metálico do comboio sobre os carris e ergueu-se, aproximou-se da linha amarela, sem a pisar, nem um centímetro mais, tinha aquele receio inconsciente. O comboio imobilizou-se e ouviu-se o ruído característico dos freios, as portas abriram-se como quem suspira alto e as pessoas começaram a sair – muitas, cansadas, incaracterísticas – de regresso a casa, também de um dia cansativo. Rostos impenetráveis passaram por ela, corpos apressados e tensos tocaram-na impercetivelmente. Mais um dia…
            Como viajava sempre em contracorrente, o comboio estava praticamente vazio. Escolheu um lugar junto à janela, como era da sua preferência. Ouviu-se o apito a avisar o fecho das portas e um vulto pardo esgueirou-se rapidamente para dentro da carruagem. Talvez por causa da pressa, sentou-se inesperadamente ao seu lado. Como estava distraída não o reconheceu logo, só reparou quando ele a cumprimentou. Sorriu com surpresa, conhecia-o. Eram colegas de trabalho, não íntimos, nem sequer muito próximos, mas tinham estabelecido os laços que duas pessoas bem-educadas mantêm por cortesia. Acenos delicados, algumas palavras de circunstância trocadas numa pausa, comentários superficiais sobre assuntos efémeros de que não conseguiria lembrar-se mesmo que fizesse um esforço. Saber-se junto a um conhecido incomodou-a como a chuva ao Alberto Caeiro, era como ter um pé dormente. Agora não poderia submergir como sempre fazia na viagem de regresso, agora seria obrigada a manter com ele uma atenção forçada para sustentar o aspecto da pessoa bem-educada que realmente era.

            Ele falava-lhe da surpresa de a encontrar ali. Era assim todos os dias? Morava para os lados da cidade? Em que zona? Era interessante que viajassem todos os dias na mesma direção, na mesma linha, e nunca se terem encontrado. Afinal o mundo talvez não fosse assim tão pequeno como se insistia em estar sempre a dizer. A voz dele era muito mais agradável do que já tinha alguma vez reparado, era até muito mais agradável do que lhe apetecia que fosse naquelas circunstâncias em que gostava de estar sozinha. Viu-se a sorrir com gosto. Ele reparou no livro que ela segurava, O amor nos tempos de cólera, disse que já o tinha lido, perguntou-lhe sobre as suas impressões de leitura, comentou aquela forma de amar feita de uma lealdade e de uma entrega inabaláveis que suportavam uma espera que durava até à velhice avançada para se concretizar, acrescentou que, apesar de o livro ser uma obra prima, aquele amor lhe parecia exacerbado, pouco credível, ficção. Riu-se e era um riso grave, surdo, profundo que a encantou. Mas o que era aquilo, agora dava-lhe para reparar no homem, para avaliar a sensação de calor tépido que a presença dele lhe ia imprimindo nos sentidos. Ele ia fazendo as despesas da conversa, agora ia tecendo comentários sobre a escrita de Gabriel Garcia Marquez. Tinham ambos lido os livros do autor do realismo fantástico. Deve ter sorrido inconscientemente, porque ele lhe perguntou de que se ria, se não tinha gostado de O general no seu labirinto. Apressou-se a desfazer o mal entendido, disse qualquer coisa que teve a certeza de ter sido bastante disparatada e sentiu-se a fazer má figura. Concentra-te, concentra-te, mantém a boa imagem, não ajas como a tola que não és.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (V)

A viagem de autocarro começou com um forte balanço, enquanto subíamos por uma estrada que não podia deixar de ser íngreme, por estas paragens é assim. Nos lugares ao lado do meu viaja um jovem casal que vem de fazer a mesma rota que nós. Facto surpreendente, trazem consigo um bebé, que, pelos meus cálculos, não deve ter mais de nove meses. No chão repousa uma mochila de o carregar às costas. O bebé está cansado e resmunga. Com o balançar do autocarro, acabamos por adormecer, o casal e o bebé também.
A viagem é longa, quando acordo, sem saber quanto tempo decorreu, sou surpreendida pelas vistas espantosas: vales verdejantes mais abaixo da estrada, que corre sempre, parece-me, num equilíbrio muito precário à beira destas escarpas profundas. Há pequenos bosques de pinheiros por onde repousam vacas indolentes. A tarde já vai avançada. O bebé começou a chorar de impaciência e cansaço. Se fosse eu, começava a afligir-me, o que havia de afligir ainda mais o bebé (por isso nunca me meti nestas aventuras com crianças muito pequenas, mas por aqui, as crianças não parecem ser obstáculo nenhum e é uma lição que aprendo: no pasa nada). A mãe espanhola limita-se a cantar-lhe uma canção de embalar numa voz que não posso deixar de achar muito doce e a menina volta a adormecer. Eu já não durmo.
Dou conta de que o percurso até Cangas de Onis se faz por uma garganta que só pode ser o famoso desfiladeiro de Los Beyos. A estrada é muito estreita, mesmo assim tem duas faixas. A cada curva mais fechada, ficamos com a impressão que o autocarro vai embater na parede oposta desta estreita passagem que a montanha permitiu. As paredes são abruptas – agora sei exatamente o significado desta palavra – ou seja, a pique, de rocha maciça, mas recortada de maneira caprichosa. Não consigo desprender os olhos, há momentos em que uma parede a direito me corta a respiração, entre o medo que o autocarro se roce por ela, cortando-se naquela lâmina, e de que se afaste correndo o risco de mergulhar no precipício, não consigo perceber o que me faz suspender a respiração. De vez em quando, cruzamos um rio numa ponte de que mal percebo os contornos. As cores variam entre o verde muito verde e todas as tonalidades de cinzento, ora quase branco, ora quase negro, da rocha dura que nos ladeia. Descubro mais tarde que a estrada corre ao lado do Rio Sella e que desce até Cangas de Onis desde a província de Leão, onde aliás ficava situada a aldeia de Caín.
Chegados a Cangas de Onís, tempo para mudar de autocarro, que finalmente nos há de transportar até Poncebos. No total, a viagem de regresso leva mais de três horas de autocarro, foi grande a volta que demos no dia de hoje. Em direção a Poncebos, a estrada não melhora. Há momentos em que aperto a mão do Tó com força, tenho mesmo medo. Como viajo do lado direito do autocarro, à janela, posso jurar que houve momentos em que me senti suspensa no vazio. Não havia berma e o motorista, na minha perspetiva, ia demasiado depressa. A ideia de um acidente não me sai da cabeça e só quero que esta viagem infernal chegue ao fim. Sei que admiro a paisagem com fascínio, mas o meu instinto de sobrevivência obriga-me a desejar pela segurança de paragens com cota mais baixa e com os pés assente na terra. A verdade é que nunca gostei de voar…
O troço até ao parque de estacionamento volta a devolver-nos às margens do rio Cares que, selvagem, continua a correr no seu leito estreito. Fechamos o ciclo já com saudades deste dia que nos colocou perante a esmagadora força da natureza e estamos gratos e reconhecidos e muito conscientes da nossa pequenez. Fica, sem dúvida, a vontade de voltar.

Regresso ao parque e jantar. Nova experiência com a Sidra Asturiana. Que desilusão!!! A sidra afamada das Astúrias sabe a uma água-pé deslavada e dizemos em voz alta a nossa perplexidade, estávamos convencidos de que a sidra ao natural devia ser um parente pobre. Estávamos, como havemos de ver, muito enganados e já não estava longe o momento da nossa conversão, que seria dali por dois dias.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (IV)

Depois de uma interupção, longa, volto à crónica de viagem. Não gosto de deixar coisas por terminar. Ainda estou na Ruta del Cares...


A parte final do percurso pela montanha revelou-nos gratas surpresas. Atravessámos o rio sobre pontes de ferro diversas vezes. Eram cada vez mais frequentes as passagens pelo interior da rocha, muito húmida, com poças de água pelo chão. A garganta por onde corre o rio foi estreitando cada vez mais. Tínhamos a ilusão de que, se estendêssemos as mãos, tocaríamos na parede rochosa do outro lado. Até que por fim, chegámos ao ponto em que a força do rio é travada por uma barragem alta, enquanto parte do seu curso é desviado pelo túnel que já referi. O ruído das águas é ensurdecer e nós percorremos os metros do túnel na rocha que se tornou a imagem de postal mais conhecida destas paragens. Ao cimo de uns degraus metálicos que sobem ao lado de outros por onde a água do rio se escapa em cascata, somos de novo surpreendidos por mais uma vista do vale por onde o rio corre mais livremente. O leito é mais largo, as pedras são maiores, as águas continuam a ser indómitas. O caminho segue à beira do rio, por um estradão. Renasce em nós uma espécie de esperança. Cruzámo-nos com dois rapazes que seguiam em sentido inverso a comer um gelado!! Afinal a civilização parece estar perto e eu já só consigo pensar no Calipo de limão que hei de comer. Os rapazes tinham o gelado quase intacto, logo a arca não pode estar longe.

Antes do paraíso, paramos a ler uma placa informativa que diz mais ou menos o seguinte: “Rota perigosa. Desprendimento e queda de pedras em todo o percurso. Caminho traçado sobre a rocha sem proteção. Tome especial cuidado. Proibido andar de bicicleta.” O aviso vinha perfeitamente a tempo, tínhamos acabado de fazer a tal rota perigosa. A verdade é que nunca senti o perigo, não sou aventureira, sou mais é inconsciente. Não penso muito antes de fazer as coisas. Sei, depois da dureza da rota, que valeu a pena, que a faria outra vez, que gostaria imenso de voltar. Foi, sem dúvida, das experiências que mais gostei.
Mais placas a informar que a senda não terminava ali. Se a memória não me engana, creio que ainda era possível seguir pela mesma rota durante cerca de vinte quilómetros. Está provado, aqui caminha-se a sério e, sem surpresa, vi muita gente a continuar. Espantada ainda, vi muita gente que me tinha ultrapassado de manhã a inverter caminho e a preparar-se para fazer todo o percurso de volta. Do nosso grupo, sou sem dúvida a que está mais quebrada. Não consigo sequer encarar a hipótese de ter que voltar e sobe-me pelo corpo o arrependimento de não ter comprado os bilhetes para o regresso em Poncebos…
Uma coisa de cada vez. Aprendi com os anos a não demonstrar aos outros as minhas apreensões. Agora vejo imensa gente sentada à beira do rio, também há gente deitada a dormir, há outros que se descalçaram e se encavalitaram nas pedras do rio deixando que a água lhes vá lavando dos pés o ardor e o cansaço da caminhada. Para já, é só nisso que penso. Descalço-me, vacilo sobre as pedras que me magoam, persisto e não desisto. Lá me arrumo de maneira pouco confortável, mas não haverá nada que me possa demover de sentir a frescura da água. É uma sensação indescritível, mas metade do prazer esvai-se perante a temperatura cortante da água: rio de montanha, água gelada, mas tão boa.
O passo seguinte é o gelado. Por entre as árvores avista-se o perfil de uma construção de madeira. Estamos perto. Não é que a dita construção é uma loja de recuerdos que vende gelados e são quatro calipos de limão. Pergunto ao rapaz que nos atende se ainda estamos longe de Caín e ele responde-me que faltam cerca de cinco minutos. Pergunto pelos autocarros – pequeno susto – diz-me que o último sai às quatro (são 15:45!). Alerta-me para a possibilidade de já não haver bilhetes – grande susto. De repente a possibilidade de, àquela hora e naquele estado, ter de fazer o caminho de volta parece bastante plausível. Penso na minha filha de 11 anos e, mentalmente dou-me uma grande repreensão.
Voltamos ao caminho. Nem cinco minutos decorreram antes de entrarmos nas ruas estreitas e parcas da aldeia de Caín. Desculpem, não me lembro de mais nada, senão de ver dois autocarros estacionados num pequeno largo, uma esplanada a que não consegui achar graça e a grandes letreiros a anunciar o número através do qual poderíamos chamar um táxi.
Um bocadinho à toa, alinhei na fila junto aos autocarros, fui percebendo que havia mais gente na mesma situação. Os motoristas perguntaram quem tinha já bilhetes. Eram muitos, porque seria? Separaram os grupos, de um lado os eleitos, do outro os condenados, teriam que separar o trigo do joio vendendo mais bilhetes. O autocarro enchia-se rapidamente, quando me parecia que já não faltariam mais do que seis lugares, consegui os nossos bilhetes. Estávamos salvos! A salvação nem sempre é simples nem barata. O motorista explicou-me (é preciso que se note que nestas coisas sou sempre eu que falo enquanto o resto do corpo da expedição assobia para o lado ou se faz descaradamente de morto) que o autocarro nos levaria até Cangas de Onis, que aí teríamos que mudar de autocarro para seguirmos até Poncebos, mas nem tudo era mau, o autocarro faria uma paragem no parque de estacionamento antes de Poncebos. Este percurso custou a módica quantia de 50 euros. Parece-me que a empresa Alsa  não deve ter problemas de solvência…
Claro que estas reflexões faço-as agora, algumas semanas depois. Na altura, só senti um doce alívio quando atirei o meu corpo cansado para os lugares que me destinaram.