terça-feira, 7 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (IV)

Depois de uma interupção, longa, volto à crónica de viagem. Não gosto de deixar coisas por terminar. Ainda estou na Ruta del Cares...


A parte final do percurso pela montanha revelou-nos gratas surpresas. Atravessámos o rio sobre pontes de ferro diversas vezes. Eram cada vez mais frequentes as passagens pelo interior da rocha, muito húmida, com poças de água pelo chão. A garganta por onde corre o rio foi estreitando cada vez mais. Tínhamos a ilusão de que, se estendêssemos as mãos, tocaríamos na parede rochosa do outro lado. Até que por fim, chegámos ao ponto em que a força do rio é travada por uma barragem alta, enquanto parte do seu curso é desviado pelo túnel que já referi. O ruído das águas é ensurdecer e nós percorremos os metros do túnel na rocha que se tornou a imagem de postal mais conhecida destas paragens. Ao cimo de uns degraus metálicos que sobem ao lado de outros por onde a água do rio se escapa em cascata, somos de novo surpreendidos por mais uma vista do vale por onde o rio corre mais livremente. O leito é mais largo, as pedras são maiores, as águas continuam a ser indómitas. O caminho segue à beira do rio, por um estradão. Renasce em nós uma espécie de esperança. Cruzámo-nos com dois rapazes que seguiam em sentido inverso a comer um gelado!! Afinal a civilização parece estar perto e eu já só consigo pensar no Calipo de limão que hei de comer. Os rapazes tinham o gelado quase intacto, logo a arca não pode estar longe.

Antes do paraíso, paramos a ler uma placa informativa que diz mais ou menos o seguinte: “Rota perigosa. Desprendimento e queda de pedras em todo o percurso. Caminho traçado sobre a rocha sem proteção. Tome especial cuidado. Proibido andar de bicicleta.” O aviso vinha perfeitamente a tempo, tínhamos acabado de fazer a tal rota perigosa. A verdade é que nunca senti o perigo, não sou aventureira, sou mais é inconsciente. Não penso muito antes de fazer as coisas. Sei, depois da dureza da rota, que valeu a pena, que a faria outra vez, que gostaria imenso de voltar. Foi, sem dúvida, das experiências que mais gostei.
Mais placas a informar que a senda não terminava ali. Se a memória não me engana, creio que ainda era possível seguir pela mesma rota durante cerca de vinte quilómetros. Está provado, aqui caminha-se a sério e, sem surpresa, vi muita gente a continuar. Espantada ainda, vi muita gente que me tinha ultrapassado de manhã a inverter caminho e a preparar-se para fazer todo o percurso de volta. Do nosso grupo, sou sem dúvida a que está mais quebrada. Não consigo sequer encarar a hipótese de ter que voltar e sobe-me pelo corpo o arrependimento de não ter comprado os bilhetes para o regresso em Poncebos…
Uma coisa de cada vez. Aprendi com os anos a não demonstrar aos outros as minhas apreensões. Agora vejo imensa gente sentada à beira do rio, também há gente deitada a dormir, há outros que se descalçaram e se encavalitaram nas pedras do rio deixando que a água lhes vá lavando dos pés o ardor e o cansaço da caminhada. Para já, é só nisso que penso. Descalço-me, vacilo sobre as pedras que me magoam, persisto e não desisto. Lá me arrumo de maneira pouco confortável, mas não haverá nada que me possa demover de sentir a frescura da água. É uma sensação indescritível, mas metade do prazer esvai-se perante a temperatura cortante da água: rio de montanha, água gelada, mas tão boa.
O passo seguinte é o gelado. Por entre as árvores avista-se o perfil de uma construção de madeira. Estamos perto. Não é que a dita construção é uma loja de recuerdos que vende gelados e são quatro calipos de limão. Pergunto ao rapaz que nos atende se ainda estamos longe de Caín e ele responde-me que faltam cerca de cinco minutos. Pergunto pelos autocarros – pequeno susto – diz-me que o último sai às quatro (são 15:45!). Alerta-me para a possibilidade de já não haver bilhetes – grande susto. De repente a possibilidade de, àquela hora e naquele estado, ter de fazer o caminho de volta parece bastante plausível. Penso na minha filha de 11 anos e, mentalmente dou-me uma grande repreensão.
Voltamos ao caminho. Nem cinco minutos decorreram antes de entrarmos nas ruas estreitas e parcas da aldeia de Caín. Desculpem, não me lembro de mais nada, senão de ver dois autocarros estacionados num pequeno largo, uma esplanada a que não consegui achar graça e a grandes letreiros a anunciar o número através do qual poderíamos chamar um táxi.
Um bocadinho à toa, alinhei na fila junto aos autocarros, fui percebendo que havia mais gente na mesma situação. Os motoristas perguntaram quem tinha já bilhetes. Eram muitos, porque seria? Separaram os grupos, de um lado os eleitos, do outro os condenados, teriam que separar o trigo do joio vendendo mais bilhetes. O autocarro enchia-se rapidamente, quando me parecia que já não faltariam mais do que seis lugares, consegui os nossos bilhetes. Estávamos salvos! A salvação nem sempre é simples nem barata. O motorista explicou-me (é preciso que se note que nestas coisas sou sempre eu que falo enquanto o resto do corpo da expedição assobia para o lado ou se faz descaradamente de morto) que o autocarro nos levaria até Cangas de Onis, que aí teríamos que mudar de autocarro para seguirmos até Poncebos, mas nem tudo era mau, o autocarro faria uma paragem no parque de estacionamento antes de Poncebos. Este percurso custou a módica quantia de 50 euros. Parece-me que a empresa Alsa  não deve ter problemas de solvência…
Claro que estas reflexões faço-as agora, algumas semanas depois. Na altura, só senti um doce alívio quando atirei o meu corpo cansado para os lugares que me destinaram. 








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