quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Um dia como os outros (II)

         Um arrepio lembrou-lhe que estava na rua, reentrou rapidamente e sentiu o corpo a receber a mornidão da casa. Fechou a porta e subiu aos quartos. Arejou camas, bateu almofadas, apanhou pijamas que dobrou metodicamente. Abriu as persianas e uma luz pálida, que não alegrou a divisão, espalhou-se em volta. Mais tarde, havia de vir fazer as camas, mas não agora.
            Desceu e foi chegando até si o som dos filhos que saíam, ouviu o motor a trabalhar lá fora. A frase: “tchau, mãe” chegou-lhe aos ouvidos pontuada pelo afastamento deles. Chegou de novo à porta e o marido acenou-lhe. Acredita que lhe devolveu o gesto, mas não pode jurar, se lhe perguntassem juraria que sim, porque era assim todos os dias, exceto fins de semana e feriados. Voltou à cozinha, arrumou a loiça, sacudiu a toalha, inspirou um pouco mais profundamente, mas sem se aperceber que era isso que estava a fazer e atirou-se à limpeza daquele compartimento. Tinha de deixar tudo limpo antes de voltar aos quartos. Água, detergente, panos, esfregou, limpou, secou, sacudiu, voltou a pôr no sítio, arrastou bancos, despejou o lixo, aspirou, lavou. Num gesto reflexo muito seu, olhou e viu que estava bem. O seu mundo movia-se rotativamente no eixo que o sustentava e tudo era como sempre.
            Subiu as escadas e entregou-se mais uma vez sem hesitações, sem uma distração, sem uma pausa, àquilo que sabia que tinha de ser feito. Sacudiu, limpou, aprumou, endireitou edredões, ajeitou as cortinas milimetricamente, estendeu tapetes, alinhou-os com os móveis, calculou distâncias e desenhou simetrias. Um quase sorriso bailou-lhe nos lábios quando, antes de fechar a porta, se voltou e contemplou o resultado do seu esforço, estava tudo tão bem.

            Era cedo, trabalhara muito rápido e podia permitir-se uma pausa. Desceu até à cozinha e preparou um chá, forte e preto como gostava, foi para a sala e sentou-se a tomá-lo. Mas já a sombra da inércia a espicaçava, como podia parar quieta, sem as mãos ocupadas? Uma chávena de chá era pouca coisa para quem precisava de muito mais. Ligou a televisão e o som entrou na sala, enchendo-a completamente. Quando deu por si, olhava as suas mãos e tinha deixado de ouvir a televisão. As mãos estavam a envelhecer, não se notava muito, mas as mudanças na pele tornaram-se visíveis e olhou para aquelas mãos quase perplexa tão pouco estava habituada a reparar em si, a olhar-se, a saber-se ali. A maior parte das vezes, carregava consigo sem ter noção do fardo, do volume, da forma, que levava, como se ela não fizesse parte da sua vida. Só raramente aquela sensação de estranheza a surpreendia e dava consigo a pensar em si como alguém que existe. Franziu a testa, porque se lembrou que, nos últimos dias, algo a incomodava, de maneira imprecisa. Perceber o que era aliviou-a finalmente: era esta sensação de si que ultimamente a despertava. Era isso. E isso trazia-lhe uma angústia pequenina, mal se dava por ela, só agora tinha conseguido ver que estava lá já há algum tempo.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Um dia como os outros

Um dia como os outros


            De repente, abriu os olhos. Era assim todas as manhãs, nunca precisou de despertador, estava a dormir profundamente e depois estava acordada. Sem transição. Passava da inconsciência para a consciência com uma rapidez automática. Era um despertar brusco que revelava imediatamente a presença das coisas em seu redor. A pessoa adormecida ao seu lado, a luz baça da janela, os tímidos sons da rua, ainda distantes, o silêncio da casa adormecida e o conhecimento de si, inteira. Era, assim, um dia como os outros.
            Sem hesitação ergueu-se, nem depressa, nem devagar. Enfiou a camisola de lã, as chinelas estavam naturalmente à mão e enfiou-as ao mesmo tempo que saía do quarto. Tudo em silêncio, gestos familiares, seguros, perfeitos, quotidianos, que não perturbavam ninguém. Nunca se soube de ninguém que tivesse acordado por ter feito barulho de manhã. Luzes não eram acesas, não embatia nos móveis, a cama não rangia. O dia começava e tudo parecia igual, a noite podia demorar-se um pouco mais no sono de todos.
            Desceu as escadas, apagou a luz de presença e orientou-se na penumbra da casa. Ao passar pela mesa do corredor, deixou a mão correr sobre ela e a lisura da madeira confortou-a, a tepidez acariciou-lhe a pele. Entrou no quarto de banho do rés-do-chão, acendeu a luz, ligou a água, lavou o corpo sem pensar na sua madureza, uma breve flacidez que ainda não tinha perdido o resto. Os gestos eram mais uma vez mecânicos, aprendidos há muito tempo, eficazes como se queria, rápidos. Saiu do banho e, ainda embrulhada na toalha, cuidou do rosto sem o ver, espalhou um creme que a mão procurou sem olhar. Porque era um dia como os outros, não pensou em si, não sentiu o corpo, não se viu, não se reconheceu. Vestiu-se com conforto, não gostava de sentir frio, procurou apenas ficar quente, a mente já ocupada com o passo seguinte, antecipação era a sua palavra de ordem.
            Abriu a porta da rua e pendurou o saco para o padeiro deixar o pão, apagou a luz que iluminava a entrada, fechou a porta. Entrou na cozinha, tirou a chávena do armário, o leite do frigorífico e aqueceu-o, pôs a toalha na mesa, torrou pão, estendeu a toalha, sentou-se e comeu. A que lhe soube a comida não poderia ter dito, não comia pelo sabor, comia porque era preciso, por isso não se esquecia de comer, se se esquecesse ficaria indisposta e teria como que um segundo despertar, mas não se sabe de nenhuma vez que isso tenha acontecido. Arrumou logo a loiça que tinha acabado de usar e começou a preparar os pequenos-almoços de todos eles: mais leite, mais chávenas, compota, cereais, manteiga, talheres dispostos, guardanapos. Preparou ainda lancheiras. A mesa tinha ficado com um aspecto simultaneamente organizado, limpo e convidativo. Olhou aquela ordem e decidiu que estava tudo bem. Estava agora na hora de ir buscar o pão que o padeiro tinha acabado de deixar. Esperou um bocadinho mais, não gostava de falar com ninguém àquela hora. Já podia ir, porque antes de o ouvir, sabia que o motor estava a arrancar. Foi buscar o pão e deixou-o também em cima da mesa, mas já não teve tempo de sentir o cheiro quente, branco, tão característico que o pão deixava a pairar na cozinha.

            Junto à máquina, separou a roupa, branca resistente para um lado, colorida delicada para o outro. A branca resistente era mais, enfiou-a na máquina, selecionou o programa, regulou a temperatura, deitou o detergente na gaveta. O som surdo do arranque deu-lhe o sinal de que podia avançar para o passo seguinte. Destrancou a porta das traseiras e, antes de abrir, antes de o ouvir, pressentiu as patas do cão, sôfrego dela, a recebê-la intempestivamente. Passou-lhe a mão ausente pela cabeça e ele correu para junto da taça e sentou-se expectante. Ela deitou-lhe a comida. Depois foi estender a roupa, organizadamente, seguindo um esquema que ela não sabia que estava a seguir. Olhou o estendal e pareceu-lhe bem. Era definitivamente um dia como os outros…


          

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O chá (Fim)

Abriu os olhos e viu, agradado que nascia o dia, já uma luz branca, uma claridade sucedia à luz amarela da rua. Passou-lhe pelo espírito a vaga lembrança de que sempre tinha gostado daquele momento secreto em que o dia sucede à noite. Como o seu sono a partir daí se tornava mais calmo, como a luz apaziguava todas as angústias e ele se entregava inconsciente nos braços de Morfeu. Poderia fazê-lo hoje, entregar-se a esse sono que tudo apaga, esse irmão da morte. Pudesse alguém deixar assim a vida, virando-se para o lado e apagando a consciência, sem dor, transitando sem o saber, transpondo o portal secreto que não permitia saídas. Voltou outra vez a si, um sorriso brincou-lhe nos lábios, perdia-se tão depressa nos seus pensamentos, afundava-se de repente e de novo despertava, surpreendido com a facilidade com que ia e vinha na sua consciência, como se dormisse depressa, como pequenos transes inofensivos. Havia em si um interruptor que ligava e desligava sem ele querer. Voltou-se de novo para a janela, a tímida luz que há pouco só se adivinhava crescia, ganhava força, empurrava a noite, que se afastava. Aquele cinza claro desaparecia e a luz ganhava um esplendor que nenhuma cortina podia reter. Naquele instante, apagaram-se as luzes amarelas da rua, as árvores da praça roçagaram agitadas pela brisa matutina e ele inspirou com força.
Ergueu-se e ficou sentando na cama, apoiou as mãos no colchão, ela deve ter-se incomodado, porque se mexeu e uma réstia do perfume dela chegou-lhe ao nariz. Absorveu-o e ficou um bocado à procura dele para que se tornasse mais preciso. Olhou-a, adormecida, a quase beleza plena que ela tinha prendeu-lhe a atenção. Sabia que ela só era mesmo bonita sob alguma luz, sob algum ângulo, fazendo com que fosse preciso olhá-la com atenção, se não a beleza não se via. Nisto, levantou-se. Alguma coisa crescia nele, começava a borbulhar, ainda não fazia barulho, como aquelas bolhas que se vão soltando do fundo da panela, antes que a água ferva, antes que se atinja o ponto de ebulição.
Contornou a cama, pegou na chávena e emborcou-a de uma vez, ouvia o barulho da sua garganta a degluti-lo, sentia o líquido frio a descer por ele, parecia-lhe que uma pequena contração lhe apertava o estômago, imaginou uma aspereza areada no fundo da chávena. Depois, já sem saber que o fazia, pousou a chávena, e voltou a deitar-se. Daí a pouco começaria o que tinha imaginado e o dia tinha nascido em pleno e ouviu ainda o pipilar ténue dos primeiros pássaros. De repente disse em voz alta, mas sem que ouvisse:

- Puta!

domingo, 26 de janeiro de 2014

O Chá (V)

Um cheiro agridoce chegou-lhe às narinas. O perfume dela, verde, floral, já esbatido, flor murcha ao fim do dia, e mais qualquer coisa, um pouco de suor, um pouco de fumo, e um outro cheiro que ele não conhecia do seu catálogo de impressões. Devia ser o cheiro do outro, quando dois corpos de friccionam, embatem, se amassam, se estreitam, colam o cheiro de um ao outro. Ela trazia o cheiro de outro e um animal ferido de morte agitou-se nele, ergueu-se nas patas traseiras e urrou de dor. Não tolerava o cheiro de outro macho nos seus domínios, por isso agitou-se, lutou para expulsar aquela sensação que o ofendia, que fazia borbulhar os seus brios de macho territorial. Um intruso penetrara e tinha que ser expulso. À letra, um intruso penetrara-a. A história seria diferente, não haveria abelhas-mestras, não haveria zangão sacrificado. Seria o macho dominante a comandar. Expulsaria o intruso e a faltosa, seria senhor nos seus domínios e reinaria ufano, outras fêmeas encontraria. Mas já o picava de novo a dúvida, teria ela tomado o chá? Não conseguia lembrar-se e já a dúvida o corroía mais do que o sangue insultado.
            Sentia-a deitada ao seu lado, a respirar brandamente, a mexer-se cuidadosamente para não o acordar. Virou-se de barriga para cima e deitou os braços por cima da cabeça e assim esteve por longos minutos. Depois virou-se para o lado, encolheu as pernas e adormeceu rapidamente. Ficou a ouvir a respiração dela e a sentir aquele corpo abandonado ao seu lado, indefeso, esperou alguma reação, quem sabe a primeira convulsão. Esperou um descompasso na respiração, como uma nota que saísse do tom. Esperou o arrefecimento do corpo. Quem sabe um vómito. Ela iria acordar, não tardaria muito, gritando que sentia um fogo a subir-lhe pelo peito, a pedir-lhe que ele chamasse um médico, porque se sentiria a morrer sem saber de quê. Ah, mas ele, que divino ator, soerguer-se-ia de um pulo, poria a máscara da consternação, mostraria todo o susto que a doença dela lhe causava, fingiria até telefonar, tentaria acalmá-la, havia de embalá-la nos braços, passaria uma mão pressurosa pela testa da sua amada e quando o pânico da morte a alcançasse, quando os olhos dela procurassem os seus, aflitos porque chegara à certeza da morte, ele havia de sorrir, havia de afastá-la dele, deixando-a tombar, havia de se erguer sem nunca desprender os olhos dela e começaria a sorrir, primeiro só um trejeito, depois um sorriso rasgado e um aceno de cabeça a confirmar aquilo que ela começava a prever, o terror a espalhar-se pelo rosto, as mãos convulsivas levantadas, a surpresa horrorizada de tudo o que era cada vez mais claro e ele diria com frieza: fui eu, é veneno. Mas nada daquilo estava a acontecer e era dele o susto, a surpresa e o horror, ela não tinha tomado o chá, era isso.

            Uma lassidão correu-lhe pelos membros, amoleceu-o o falhanço redondo de tudo o que tinha acabado de pressentir, de quase a acontecer. Porquê? Por que é que logo hoje tinha ela ignorado o chá? Assaltou-o mais essa revelação, não tinha sido só o chá a ser rejeitado, tinha sido, isso sim, o gesto dele, o cuidado que pusera na sua preparação e ela tinha-os deixado desprezados: o chá, os gestos, os cuidados. O espinho entrou um pouco mais entre a unha e a carne. Abria-se à dor, entregava-se a ela, os braços alargavam-se para a colher, para a beber até ao fundo da taça. Ela vencia, resfolegara-se com outro e, tão cheia dele e de si mesma, votara-o a um plano inclinado do qual ele escorria inabalavelmente para baixo, cada vez mais para baixo. Caía cada vez mais depressa e já não era possível que se salvasse. Convulso – era tão grande a dor, a humilhação crescia como massa fermentada ao sol, esboroava-o e rompia-lhe os tecidos, cavando cavernas e aberturas na sua vontade. Esquecido da maneira como tinha preparado o chá, esquecido de que tinha querido que ela morresse nos seus braços, para a poder fitar de cima, para lhe poder revelar tudo no último momento e para a ver, por fim, partir com horror e surpresa nos olhos que até ao fim não se soltavam dos seus, enquanto as mãos perdiam a força e o corpo se tornava cada vez mole. Mas ela não lho tinha permitido, mais uma vez fazia gorar a sua determinação e rilhou os dentes. Dor? Raiva? Raiva e dor.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Chá (IV)

Obrigou-se a pensar nela, àquela hora havia mãos quentes a tomarem-lhe os seios, a apertá-los, uma boca ávida sugava-lhe os mamilos. Ouvia-a a respirar pesadamente, cada vez mais depressa. Sabia muito bem os sons que ela emitia quando estava no cio. Ela tirava a camisola fina, por cima da cabeça, o cabelo descompunha-se, não havia tempo para o tirar da cara. Ela estava por cima, abelha-mestra, mexia-se, as mãos apoiados no peito dele. O primeiro gemido soltou-se-lhe da boca. O gemido despertou-o, porque foi ele que gemeu. Pegou na colher e mexeu o líquido. Extenuado, caiu sobre a cama, como se a tivesse amado ali, como tinha amado e agora era inexorável. Os olhos ficaram parados na janela e de novo gostou da luz que vinha de fora, das sombras que as árvores da praça projetavam na parede e seguiu esse movimento. Era preciso acabar, deixar tudo pronto para a sua hora, aquela hora em que se decidira, em que se via muito mais decidido do que ela alguma vez tinha imaginado, e riu-se e voltou a sobressaltar-se com o som do seu riso. Quer era isto? Não podia fazer barulho, era preciso que tudo ficasse inominável.
            Rebolou para o seu lado da cama, ajeitou a almofada entre o ombro e o pescoço e estava bem. Sem querer enroscou-se e, tudo pronto, preparou-se para dormir. De repente, abriu os olhos para o escuro, uma exclamação saiu-lhe da boca, faltava uma coisa: a chávena dele. Era preciso compor o cenário, para parecer que se tinha cansado de esperar. Empurrou o cansaço, empurrou com força e ergueu-se ainda uma vez. Com passos pouco seguros foi à cozinha e trouxe a outra chávena que pousou sobre a sua mesinha. Deitou-se, respirando profundamente e ficou à espera no escuro. Sem saber como, o cansaço regressou e tomou-o na sua lassidão e adormeceu.


            Estremunhado, acordou perdido, sobressaltado, sem saber bem o que o despertara. Procurou na mesa ao lado o relógio. Os ponteiros fosforescentes indicavam cinco da manhã. Confuso, procurou lembrar-se do dia, seria dia de trabalho? Não, hoje não ia trabalhar. De repente assomou-lhe ao espírito a sua noite, recuperou tudo com rapidez. Ela ainda não tinha chegado. Então o que tinha feito com que despertasse? Ao ouvir o ruído metálico da fechadura, percebeu. Ela estava a chegar. Chegava assim também a hora decisiva. Chegaram juntas, ela e a hora. Cautela, era preciso desempenhar bem o seu papel – afinal era o papel principal, e a letra de uma canção insinuou-se no espírito. Virar-se para a parede, assim quando ela entrar não descortinará o seu rosto. Pediu mentalmente que ela não fizesse nada para o acordar. Não poderia olhá-la sem evitar que algo do que nele se agitava e borbulhava viesse a explodir-lhe no rosto. Fez um esgar, era uma careta, não sabia que era tão ardiloso. Repetiu mentalmente as coisas que ela fazia, pendurava a carteira, agora estava a tirar os sapatos, primeiro um pé, depois o outro, enquanto andava ia desapertando a camisola e as calças, empurrou a porta da casa de banho, olhou-se no espelho, virando o rosto de um lado para o outro. O ruído indistinto de frascos que se entrechocavam confirmou-lhe tudo o que compusera com o espírito atento. Daí a pouco entraria no quarto, sem acender a lâmpada de cima para não o acordar. Ligaria o candeeiro da sua mesinha que espalharia uma luz branca em círculo. Havia de se despir em frente ao espelho, nesse momento gostaria de olhar para ela enquanto aquele corpo amado ia surgindo das roupas, primeiro as pernas, a visão das costas curvas, depois havia de se endireitar e tirar a blusa, o sutiã e pelo espelho ficavam visíveis os seios macios. Rapidamente, ela voltar-se-ia para o armário e escolheria uma peça leve e curta para dormir.
            Sobressaltou-se outra vez ao ouvir a porta do armário a fechar-se, ela já cumprira o seu ritual noturno. Sentiu a cama a afundar do lado dela quando ela se sentou. Reteve a respiração. Seguiu os olhos dela para o tabuleiro, sabia que ela olhava a chávena com o chá. Seria agora? Fez força para se conter, para não gritar para que ela parasse, que era veneno, chorando já no seu regaço abraçando-a, querendo que ela lhe prometesse tudo o que lhe tinha tirado nestes últimos anos. Claro que nada foi assim. Ela apagou a luz e deitou-se e ele abriu os olhos numa interrogação cega para o escuro. Será que bebeu o chá? Distraiu-se e tinha perdido o fio à meada e agora não sabia do que tinha imaginado aquilo que realmente acontecera.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O Chá (III)

Lembrou-se do hábito, um deles, em que a vida deles tinha desembocado. Todos dias à noite partilhavam um chá. Sempre preparado por ele. Punha a chaleira ao lume, esperava de pé encostado à bancada, a luz branca da cozinha criava um ambiente imputrescível, liso, direito. A casa àquela hora respirava como um corpo entregue ao repouso. O chiado da chaleira despertava-o. Com gestos lentos e distraídos tirava as chávenas do armário. Escolhia as chávenas. Ela gostava da azul, ele preferia aquela com figuras geométricas verdes. Em cada uma delas colocava um saquinho, Lúcia-lima, a ressonância feminina do chá da noite. Deitava a água, prendendo o fio nas asas das chávenas para que o saquinho não fosse com a água. Dispunha as chávenas no tabuleiro, às vezes juntava um pratinho de bolachas e o doce de que ela gostava. Ela censurava-o, mas debicava sempre as bolachas. Era daquelas da preservação da beleza a todo o custo. Surpreendido viu a chávena à sua frente e ouviu o chiado da chaleira. Fizera-o mecanicamente e a chávena fumegava à sua frente, perfumando o ar com o cheiro verde da Lúcia-lima. Foi buscar o tabuleiro, arranjado como sempre, voltou ao quarto.
            O tabuleiro em cima da mesa do lado dela. No bolso das calças sentiu o roçagar do pacotinho de plástico com um pozinho branco, o pó inominável, o projeto inominável. Dia das coisas sem nome. Tirou o embrulho do bolso, mexeu-lhe, fez deslizar a pequena quantidade de pó de um lado para o outro, virou para cima, o pó desceu, inverteu o movimento e o pó voltou a descer. Era outra vez a inércia, a consciência da inevitabilidade. Desencadeou-se, era inexorável, distraído, mastigou mais esta palavra. Gostava de palavras, detinha-se nelas. Às vezes, quando ela perdia a paciência com ele, achando que se tinha distraído, achando que estava lento, estava a mastigar palavras, a pensar nelas. O pó espalhava-se por todo o pacote, é branco, parece plástico, qualquer coisa artificial de tão branco. Fino, leve, parecia inofensivo. Veneno, veneno para ela. Era inevitável. A humilhação vinha a crescer cada vez mais e o veneno estava ali entre os dedos, prometendo-lhe essa desforra de todos os embustes, as mentiras, as humilhações, a altivez com que ela se habituara a olhar para ele. Aquele olhar de sarcasmo, de ironia que ela lançava sobre ele, cada vez mais declarado. Chega, chega. Veneno, seria veneno.

            Lá atrás, do outro lado dos seus sentidos, algo falava da inexorabilidade, do depois. Mas aquela vozinha não importava. Tinha-se desencadeado, não havia volta, era o impasse, a beco sem saída. Ela tinha de morrer e seria naquela noite, depois de resfolegar algures, depois de se ter entregue uma vez mais a outro. Ele não chegava para ela, ninguém chegava, nada chegava. De repente subiu uma pressa, uma urgência de acabar depressa, de ver o quanto antes o que estava depois, o que seria o outro lado. Rasgou o topo do pacote, foi um bocado brusco, sujou os dedos. A tentação foi grande: encostou a ponta da língua ao dedo, procurou o gosto daquele pó, mas não sentiu quase nada, quase imaginou um sabor metálico, mais imaginado que efetivo, o pó não tinha sabor, era preciso que não tivesse sabor. Ergueu o pacote, pegou-lhe como numa calha e deixou-o escorrer para as chávenas. A euforia surpreendeu-o. Estava mesmo a fazê-lo. Podia voltar atrás, podia derrubar a chávena, evitá-lo ainda. Não. Não. Eu quero!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Chá (II)

            Inevitavelmente, tudo tem o avesso, do lado dela a história era diferente, tinha uma pequena nuance, que não teria importância de maior não fossem duas pequeninas circunstâncias: conhecê-las e perceber que o incomodavam, como a roupa que não assenta bem no corpo, como um membro dormente. Não, não, estava a dizer mal, conseguia ser mais preciso, mesmo que, ao sê-lo, não pudesse mais mascarar a verdade: aquilo picava-o como um espinho grosso cravado entre a unha e a carne. Ela tinha outro homem. Correção: nunca tinha sido homem para ela, porque um só não chegava. Outra correção, porque era o dia da verdade: ela tinha outros homens.
            Não ia agora fazer o mea culpa, havia culpa? Deteve-se na palavra culpa. A raiva injetada nas veias mostrou-lhe que a culpa não era dele, questão resolvida. A culpa era dela. Havia a crónica feminina, o manual de qualquer mulher com listas de verificação dos erros que os machos embrutecidos sempre cometeram, desde os séculos dos séculos, contra as finas flores da feminilidade, recusando-se ao culto de Afrodite. As afrodites quando não cultuadas procuram outros sacerdotes, basta folhear as crónicas e verificar a validade desta teoria. Homem que não oficia é ornado com chifres. A palavra voltou a encher-lhe a boca como um vómito, ainda a segurou, era cedo.
            O dia de hoje tinha sido de festa, havia festa fora e dentro dela. A festa era um bom pretexto para as suas escapadelas. Palavra bem escolhida, não é amor, não era amor que a movia, era o sexo, sexo, sexo, e por causa dele se esgueirava. Ficou outra vez parado na palavra e ela encheu-se de significado, corpos em choque, rostos retorcidos, bocas abertas, mamas e cus. Era ela. Ninfomaníaca? As palavras eram curiosas. Qual seria a mais indicada, ninfomaníaca? Haveria outra? Havia a outra, chula, mas ainda era cedo. Ela tinha ficado na festa, quando lhe disse que vinha embora, porque cansado, fora a razão que lhe dera, porque era um chato, a razão que ela tinha compreendido, porque precisava de se preparar, a razão porque tinha vindo. Hoje era dia de festa e era o dia da sua vingança, uma festa também, com pratos frios, mas igualmente notáveis. Seria hoje, para isso se tinha vindo a preparar. Abriu os olhos, procurou os números luminosos do relógio, tinham passado mais do que quinze minutos, ele sabia que o tempo ia sempre à frente.

            Mais um bocadinho, mais cinco minutos, ainda há tempo. Começou a varrer a sua vontade, juntou-a num montinho, pós espalhados nos vãos das portas, nadas, fiapos cinzentos, cotão, mas juntos faziam um bolo, que comeu de um trago. Deu um impulso, ergueu-se de repente, puxou as pernas para o lado, sentou-se e pousou os pés no chão, sorveu o ar e fincou os cotovelos nos joelhos, pôs a cabeça sobre as mãos. Deu-se conta das costas curvadas, sentiu os músculos encolhidos e a tensão nos ombros. Correção: esticou as costas, endireitou-as, abriu os braços, deixou-os cair ao lado do corpo, as mãos tocaram o tecido, era macio como uma carne que lateja, macio, macio, macio, deixou-se ficar a afagá-lo. Respirou fundo, mais fundo, expeliu o ar, ouviu o som da sua expiração e sentiu-se como uma arma engatilhada. Levantou-se, uma ligeira tontura toldou-lhe o olhar, uma sombra escura passou. Pressionou os olhos, abriu-os e pestanejou várias vezes, viu as sombras do quarto, viu o retângulo da janela iluminada com a luz amarela da rua, viu as sombras das árvores da praça desenhadas nas paredes, agitando-se. Lá fora era uma noite de verão, morna, para a qual era bom sair. Gostou do quarto assim na penumbra, não acender a luz, a luz é muito crua, podia enfraquecer-lhe a coragem para a vingança. Já não era cedo, era agora.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Chá

O chá
           
            A noite ia já alta, deitado sobre a cama repassava a vida a limpo, ia e vinha, ia e vinha, desembocando sempre naquela mesma noite. Deitado sobre a cama, sentia o corpo abandonado à inércia, sentia a falta de vontade, os membros pesados, pesados, os olhos abertos, fixos no teto, mas sem o ver, o olhar, como tudo nele, voltado para dentro, vendo-se a ir e a vir, a viajar no tempo, o seu tempo.
            Sozinho há um par de horas, nenhum deles tinha voltado, saber-se sozinho não importava, mas facilitava o que queria fazer. Com os outros em casa não deixaria de ser possível, mas estando só era tudo mais fácil. Daqui a quinze minutos. Definir um objetivo era importante, daí que tenha pensado em ir daqui a quinze minutos. Enquanto esses escorressem, deixaria um pouco mais o corpo imóvel, sem se voltar, sem se mexer, sabia-lhe bem, sabia que aqueles quinze minutos passariam muito depressa, por isso procurou abstrair-se de novo e de novo repassar a vida a limpo. Os olhos fechados, a imagem dela veio e foi fácil que viesse. Nela permanecia tudo aquilo de que gostava, mas era para as mãos que os olhos desciam e a macieza da pele tornou-se viva e palpável. Eram um pouquinho, muito pouco papudas e macias, macias, a pele muito fina deixava sentir a carne a palpitar e ele deixava-se ficar a afagá-las irresistivelmente, abandonando-se às sensações que se espalhavam pela sua própria pele em círculos.
            Quase sem transição sabia que chegava a raiva e que aquela sensação quente nunca seria bastante para a arrefecer. Os olhos fecharam-se com mais força, a cabeça caiu para o lado, queria afastar-se, queria sair dali, mas já não podia, já estava no círculo onde a raiva era um animal desenfreado, que debandava pelo seu sangue, acelerando-lho e fazendo-o respirar com ruído. A palavra formou-se numa pasta de saliva, mas ele não a deixou sair, não a soprou e fechou os lábios com força. Não fosse ela escapar-lhe. Ainda não, ainda não, não podia fazer nada antes do tempo. Agora desperto preparou-se para assistir à repetição de tudo. Desde a primeira hora sabia que não era homem que chegasse para ela, nela havia a força de toneladas de água em queda livre, por isso era vital que se mexesse e fazia-o sempre, mesmo quando parada, falava, ria, mexia as mãos, o cabelo sacudido, a madeixa que enrolava nos dedos enquanto falava, o sorriso aberto e falava, falava sempre muito, completando qualquer espaço que estivesse vazio, como se receasse coisas por preencher.

            A figura dela, sem ser bonita, prendia a atenção e foi assim com ele, e com todos os outros que esvoaçavam à volta dela. Por qualquer estranha conjugação astral, ela gostara dele, contra toda a lógica de duas pessoas que pareciam tão afastadas como as duas margens de um rio. Preencheram todos os requisitos que a corte enamorada pressupõe, picaram os clichés, e parecia amor. Como quem se deixa ir, casaram, como quem se deixa ir, procriaram, como quem se deixa ir, caíram no marasmo dos casais que permanecem unidos pelo hábito e o medo de rotinas diferentes. Esta era uma dos rostos, uma das versões desta história.