Um arrepio
lembrou-lhe que estava na rua, reentrou rapidamente e sentiu o corpo a receber
a mornidão da casa. Fechou a porta e subiu aos quartos. Arejou camas, bateu
almofadas, apanhou pijamas que dobrou metodicamente. Abriu as persianas e uma
luz pálida, que não alegrou a divisão, espalhou-se em volta. Mais tarde, havia
de vir fazer as camas, mas não agora.
Desceu e foi chegando até si o som
dos filhos que saíam, ouviu o motor a trabalhar lá fora. A frase: “tchau, mãe”
chegou-lhe aos ouvidos pontuada pelo afastamento deles. Chegou de novo à porta
e o marido acenou-lhe. Acredita que lhe devolveu o gesto, mas não pode jurar,
se lhe perguntassem juraria que sim, porque era assim todos os dias, exceto
fins de semana e feriados. Voltou à cozinha, arrumou a loiça, sacudiu a toalha,
inspirou um pouco mais profundamente, mas sem se aperceber que era isso que
estava a fazer e atirou-se à limpeza daquele compartimento. Tinha de deixar
tudo limpo antes de voltar aos quartos. Água, detergente, panos, esfregou,
limpou, secou, sacudiu, voltou a pôr no sítio, arrastou bancos, despejou o
lixo, aspirou, lavou. Num gesto reflexo muito seu, olhou e viu que estava bem.
O seu mundo movia-se rotativamente no eixo que o sustentava e tudo era como
sempre.
Subiu as escadas e entregou-se mais
uma vez sem hesitações, sem uma distração, sem uma pausa, àquilo que sabia que
tinha de ser feito. Sacudiu, limpou, aprumou, endireitou edredões, ajeitou as
cortinas milimetricamente, estendeu tapetes, alinhou-os com os móveis, calculou
distâncias e desenhou simetrias. Um quase sorriso bailou-lhe nos lábios quando,
antes de fechar a porta, se voltou e contemplou o resultado do seu esforço, estava
tudo tão bem.
Era cedo, trabalhara muito rápido e
podia permitir-se uma pausa. Desceu até à cozinha e preparou um chá, forte e
preto como gostava, foi para a sala e sentou-se a tomá-lo. Mas já a sombra da
inércia a espicaçava, como podia parar quieta, sem as mãos ocupadas? Uma
chávena de chá era pouca coisa para quem precisava de muito mais. Ligou a
televisão e o som entrou na sala, enchendo-a completamente. Quando deu por si,
olhava as suas mãos e tinha deixado de ouvir a televisão. As mãos estavam a
envelhecer, não se notava muito, mas as mudanças na pele tornaram-se visíveis e
olhou para aquelas mãos quase perplexa tão pouco estava habituada a reparar em
si, a olhar-se, a saber-se ali. A maior parte das vezes, carregava consigo sem
ter noção do fardo, do volume, da forma, que levava, como se ela não fizesse
parte da sua vida. Só raramente aquela sensação de estranheza a surpreendia e
dava consigo a pensar em si como alguém que existe. Franziu a testa, porque se
lembrou que, nos últimos dias, algo a incomodava, de maneira imprecisa.
Perceber o que era aliviou-a finalmente: era esta sensação de si que
ultimamente a despertava. Era isso. E isso trazia-lhe uma angústia pequenina,
mal se dava por ela, só agora tinha conseguido ver que estava lá já há algum
tempo.