Um dia como os
outros
De repente, abriu os olhos. Era
assim todas as manhãs, nunca precisou de despertador, estava a dormir
profundamente e depois estava acordada. Sem transição. Passava da inconsciência
para a consciência com uma rapidez automática. Era um despertar brusco que
revelava imediatamente a presença das coisas em seu redor. A pessoa adormecida
ao seu lado, a luz baça da janela, os tímidos sons da rua, ainda distantes, o
silêncio da casa adormecida e o conhecimento de si, inteira. Era, assim, um dia
como os outros.
Sem hesitação ergueu-se, nem
depressa, nem devagar. Enfiou a camisola de lã, as chinelas estavam
naturalmente à mão e enfiou-as ao mesmo tempo que saía do quarto. Tudo em
silêncio, gestos familiares, seguros, perfeitos, quotidianos, que não
perturbavam ninguém. Nunca se soube de ninguém que tivesse acordado por ter
feito barulho de manhã. Luzes não eram acesas, não embatia nos móveis, a cama
não rangia. O dia começava e tudo parecia igual, a noite podia demorar-se um
pouco mais no sono de todos.
Desceu as escadas, apagou a luz de
presença e orientou-se na penumbra da casa. Ao passar pela mesa do corredor,
deixou a mão correr sobre ela e a lisura da madeira confortou-a, a tepidez
acariciou-lhe a pele. Entrou no quarto de banho do rés-do-chão, acendeu a luz,
ligou a água, lavou o corpo sem pensar na sua madureza, uma breve flacidez que
ainda não tinha perdido o resto. Os gestos eram mais uma vez mecânicos,
aprendidos há muito tempo, eficazes como se queria, rápidos. Saiu do banho e, ainda
embrulhada na toalha, cuidou do rosto sem o ver, espalhou um creme que a mão
procurou sem olhar. Porque era um dia como os outros, não pensou em si, não
sentiu o corpo, não se viu, não se reconheceu. Vestiu-se com conforto, não
gostava de sentir frio, procurou apenas ficar quente, a mente já ocupada com o
passo seguinte, antecipação era a sua palavra de ordem.
Abriu a porta da rua e pendurou o
saco para o padeiro deixar o pão, apagou a luz que iluminava a entrada, fechou
a porta. Entrou na cozinha, tirou a chávena do armário, o leite do frigorífico
e aqueceu-o, pôs a toalha na mesa, torrou pão, estendeu a toalha, sentou-se e
comeu. A que lhe soube a comida não poderia ter dito, não comia pelo sabor,
comia porque era preciso, por isso não se esquecia de comer, se se esquecesse
ficaria indisposta e teria como que um segundo despertar, mas não se sabe de
nenhuma vez que isso tenha acontecido. Arrumou logo a loiça que tinha acabado
de usar e começou a preparar os pequenos-almoços de todos eles: mais leite, mais
chávenas, compota, cereais, manteiga, talheres dispostos, guardanapos. Preparou
ainda lancheiras. A mesa tinha ficado com um aspecto simultaneamente
organizado, limpo e convidativo. Olhou aquela ordem e decidiu que estava tudo
bem. Estava agora na hora de ir buscar o pão que o padeiro tinha acabado de
deixar. Esperou um bocadinho mais, não gostava de falar com ninguém àquela
hora. Já podia ir, porque antes de o ouvir, sabia que o motor estava a
arrancar. Foi buscar o pão e deixou-o também em cima da mesa, mas já não teve
tempo de sentir o cheiro quente, branco, tão característico que o pão deixava a
pairar na cozinha.
Junto à máquina, separou a roupa,
branca resistente para um lado, colorida delicada para o outro. A branca
resistente era mais, enfiou-a na máquina, selecionou o programa, regulou a
temperatura, deitou o detergente na gaveta. O som surdo do arranque deu-lhe o
sinal de que podia avançar para o passo seguinte. Destrancou a porta das
traseiras e, antes de abrir, antes de o ouvir, pressentiu as patas do cão,
sôfrego dela, a recebê-la intempestivamente. Passou-lhe a mão ausente pela
cabeça e ele correu para junto da taça e sentou-se expectante. Ela deitou-lhe a
comida. Depois foi estender a roupa, organizadamente, seguindo um esquema que
ela não sabia que estava a seguir. Olhou o estendal e pareceu-lhe bem. Era
definitivamente um dia como os outros…
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