Um cheiro agridoce chegou-lhe às narinas. O perfume
dela, verde, floral, já esbatido, flor murcha ao fim do dia, e mais qualquer
coisa, um pouco de suor, um pouco de fumo, e um outro cheiro que ele não
conhecia do seu catálogo de impressões. Devia ser o cheiro do outro, quando
dois corpos de friccionam, embatem, se amassam, se estreitam, colam o cheiro de
um ao outro. Ela trazia o cheiro de outro e um animal ferido de morte agitou-se
nele, ergueu-se nas patas traseiras e urrou de dor. Não tolerava o cheiro de
outro macho nos seus domínios, por isso agitou-se, lutou para expulsar aquela
sensação que o ofendia, que fazia borbulhar os seus brios de macho territorial.
Um intruso penetrara e tinha que ser expulso. À letra, um intruso penetrara-a.
A história seria diferente, não haveria abelhas-mestras, não haveria zangão
sacrificado. Seria o macho dominante a comandar. Expulsaria o intruso e a
faltosa, seria senhor nos seus domínios e reinaria ufano, outras fêmeas
encontraria. Mas já o picava de novo a dúvida, teria ela tomado o chá? Não
conseguia lembrar-se e já a dúvida o corroía mais do que o sangue insultado.
Sentia-a
deitada ao seu lado, a respirar brandamente, a mexer-se cuidadosamente para não
o acordar. Virou-se de barriga para cima e deitou os braços por cima da cabeça e
assim esteve por longos minutos. Depois virou-se para o lado, encolheu as
pernas e adormeceu rapidamente. Ficou a ouvir a respiração dela e a sentir
aquele corpo abandonado ao seu lado, indefeso, esperou alguma reação, quem sabe
a primeira convulsão. Esperou um descompasso na respiração, como uma nota que
saísse do tom. Esperou o arrefecimento do corpo. Quem sabe um vómito. Ela iria
acordar, não tardaria muito, gritando que sentia um fogo a subir-lhe pelo
peito, a pedir-lhe que ele chamasse um médico, porque se sentiria a morrer sem
saber de quê. Ah, mas ele, que divino ator, soerguer-se-ia de um pulo, poria a
máscara da consternação, mostraria todo o susto que a doença dela lhe causava,
fingiria até telefonar, tentaria acalmá-la, havia de embalá-la nos braços,
passaria uma mão pressurosa pela testa da sua amada e quando o pânico da morte
a alcançasse, quando os olhos dela procurassem os seus, aflitos porque chegara
à certeza da morte, ele havia de sorrir, havia de afastá-la dele, deixando-a
tombar, havia de se erguer sem nunca desprender os olhos dela e começaria a
sorrir, primeiro só um trejeito, depois um sorriso rasgado e um aceno de cabeça
a confirmar aquilo que ela começava a prever, o terror a espalhar-se pelo
rosto, as mãos convulsivas levantadas, a surpresa horrorizada de tudo o que era
cada vez mais claro e ele diria com frieza: fui eu, é veneno. Mas nada daquilo
estava a acontecer e era dele o susto, a surpresa e o horror, ela não tinha
tomado o chá, era isso.
Uma
lassidão correu-lhe pelos membros, amoleceu-o o falhanço redondo de tudo o que
tinha acabado de pressentir, de quase a acontecer. Porquê? Por que é que logo
hoje tinha ela ignorado o chá? Assaltou-o mais essa revelação, não tinha sido
só o chá a ser rejeitado, tinha sido, isso sim, o gesto dele, o cuidado que
pusera na sua preparação e ela tinha-os deixado desprezados: o chá, os gestos,
os cuidados. O espinho entrou um pouco mais entre a unha e a carne. Abria-se à
dor, entregava-se a ela, os braços alargavam-se para a colher, para a beber até
ao fundo da taça. Ela vencia, resfolegara-se com outro e, tão cheia dele e de
si mesma, votara-o a um plano inclinado do qual ele escorria inabalavelmente
para baixo, cada vez mais para baixo. Caía cada vez mais depressa e já não era
possível que se salvasse. Convulso – era tão grande a dor, a humilhação crescia
como massa fermentada ao sol, esboroava-o e rompia-lhe os tecidos, cavando
cavernas e aberturas na sua vontade. Esquecido da maneira como tinha preparado
o chá, esquecido de que tinha querido que ela morresse nos seus braços, para a
poder fitar de cima, para lhe poder revelar tudo no último momento e para a
ver, por fim, partir com horror e surpresa nos olhos que até ao fim não se
soltavam dos seus, enquanto as mãos perdiam a força e o corpo se tornava cada
vez mole. Mas ela não lho tinha permitido, mais uma vez fazia gorar a sua
determinação e rilhou os dentes. Dor? Raiva? Raiva e dor.
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