domingo, 26 de janeiro de 2014

O Chá (V)

Um cheiro agridoce chegou-lhe às narinas. O perfume dela, verde, floral, já esbatido, flor murcha ao fim do dia, e mais qualquer coisa, um pouco de suor, um pouco de fumo, e um outro cheiro que ele não conhecia do seu catálogo de impressões. Devia ser o cheiro do outro, quando dois corpos de friccionam, embatem, se amassam, se estreitam, colam o cheiro de um ao outro. Ela trazia o cheiro de outro e um animal ferido de morte agitou-se nele, ergueu-se nas patas traseiras e urrou de dor. Não tolerava o cheiro de outro macho nos seus domínios, por isso agitou-se, lutou para expulsar aquela sensação que o ofendia, que fazia borbulhar os seus brios de macho territorial. Um intruso penetrara e tinha que ser expulso. À letra, um intruso penetrara-a. A história seria diferente, não haveria abelhas-mestras, não haveria zangão sacrificado. Seria o macho dominante a comandar. Expulsaria o intruso e a faltosa, seria senhor nos seus domínios e reinaria ufano, outras fêmeas encontraria. Mas já o picava de novo a dúvida, teria ela tomado o chá? Não conseguia lembrar-se e já a dúvida o corroía mais do que o sangue insultado.
            Sentia-a deitada ao seu lado, a respirar brandamente, a mexer-se cuidadosamente para não o acordar. Virou-se de barriga para cima e deitou os braços por cima da cabeça e assim esteve por longos minutos. Depois virou-se para o lado, encolheu as pernas e adormeceu rapidamente. Ficou a ouvir a respiração dela e a sentir aquele corpo abandonado ao seu lado, indefeso, esperou alguma reação, quem sabe a primeira convulsão. Esperou um descompasso na respiração, como uma nota que saísse do tom. Esperou o arrefecimento do corpo. Quem sabe um vómito. Ela iria acordar, não tardaria muito, gritando que sentia um fogo a subir-lhe pelo peito, a pedir-lhe que ele chamasse um médico, porque se sentiria a morrer sem saber de quê. Ah, mas ele, que divino ator, soerguer-se-ia de um pulo, poria a máscara da consternação, mostraria todo o susto que a doença dela lhe causava, fingiria até telefonar, tentaria acalmá-la, havia de embalá-la nos braços, passaria uma mão pressurosa pela testa da sua amada e quando o pânico da morte a alcançasse, quando os olhos dela procurassem os seus, aflitos porque chegara à certeza da morte, ele havia de sorrir, havia de afastá-la dele, deixando-a tombar, havia de se erguer sem nunca desprender os olhos dela e começaria a sorrir, primeiro só um trejeito, depois um sorriso rasgado e um aceno de cabeça a confirmar aquilo que ela começava a prever, o terror a espalhar-se pelo rosto, as mãos convulsivas levantadas, a surpresa horrorizada de tudo o que era cada vez mais claro e ele diria com frieza: fui eu, é veneno. Mas nada daquilo estava a acontecer e era dele o susto, a surpresa e o horror, ela não tinha tomado o chá, era isso.

            Uma lassidão correu-lhe pelos membros, amoleceu-o o falhanço redondo de tudo o que tinha acabado de pressentir, de quase a acontecer. Porquê? Por que é que logo hoje tinha ela ignorado o chá? Assaltou-o mais essa revelação, não tinha sido só o chá a ser rejeitado, tinha sido, isso sim, o gesto dele, o cuidado que pusera na sua preparação e ela tinha-os deixado desprezados: o chá, os gestos, os cuidados. O espinho entrou um pouco mais entre a unha e a carne. Abria-se à dor, entregava-se a ela, os braços alargavam-se para a colher, para a beber até ao fundo da taça. Ela vencia, resfolegara-se com outro e, tão cheia dele e de si mesma, votara-o a um plano inclinado do qual ele escorria inabalavelmente para baixo, cada vez mais para baixo. Caía cada vez mais depressa e já não era possível que se salvasse. Convulso – era tão grande a dor, a humilhação crescia como massa fermentada ao sol, esboroava-o e rompia-lhe os tecidos, cavando cavernas e aberturas na sua vontade. Esquecido da maneira como tinha preparado o chá, esquecido de que tinha querido que ela morresse nos seus braços, para a poder fitar de cima, para lhe poder revelar tudo no último momento e para a ver, por fim, partir com horror e surpresa nos olhos que até ao fim não se soltavam dos seus, enquanto as mãos perdiam a força e o corpo se tornava cada vez mole. Mas ela não lho tinha permitido, mais uma vez fazia gorar a sua determinação e rilhou os dentes. Dor? Raiva? Raiva e dor.

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