quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O Chá (III)

Lembrou-se do hábito, um deles, em que a vida deles tinha desembocado. Todos dias à noite partilhavam um chá. Sempre preparado por ele. Punha a chaleira ao lume, esperava de pé encostado à bancada, a luz branca da cozinha criava um ambiente imputrescível, liso, direito. A casa àquela hora respirava como um corpo entregue ao repouso. O chiado da chaleira despertava-o. Com gestos lentos e distraídos tirava as chávenas do armário. Escolhia as chávenas. Ela gostava da azul, ele preferia aquela com figuras geométricas verdes. Em cada uma delas colocava um saquinho, Lúcia-lima, a ressonância feminina do chá da noite. Deitava a água, prendendo o fio nas asas das chávenas para que o saquinho não fosse com a água. Dispunha as chávenas no tabuleiro, às vezes juntava um pratinho de bolachas e o doce de que ela gostava. Ela censurava-o, mas debicava sempre as bolachas. Era daquelas da preservação da beleza a todo o custo. Surpreendido viu a chávena à sua frente e ouviu o chiado da chaleira. Fizera-o mecanicamente e a chávena fumegava à sua frente, perfumando o ar com o cheiro verde da Lúcia-lima. Foi buscar o tabuleiro, arranjado como sempre, voltou ao quarto.
            O tabuleiro em cima da mesa do lado dela. No bolso das calças sentiu o roçagar do pacotinho de plástico com um pozinho branco, o pó inominável, o projeto inominável. Dia das coisas sem nome. Tirou o embrulho do bolso, mexeu-lhe, fez deslizar a pequena quantidade de pó de um lado para o outro, virou para cima, o pó desceu, inverteu o movimento e o pó voltou a descer. Era outra vez a inércia, a consciência da inevitabilidade. Desencadeou-se, era inexorável, distraído, mastigou mais esta palavra. Gostava de palavras, detinha-se nelas. Às vezes, quando ela perdia a paciência com ele, achando que se tinha distraído, achando que estava lento, estava a mastigar palavras, a pensar nelas. O pó espalhava-se por todo o pacote, é branco, parece plástico, qualquer coisa artificial de tão branco. Fino, leve, parecia inofensivo. Veneno, veneno para ela. Era inevitável. A humilhação vinha a crescer cada vez mais e o veneno estava ali entre os dedos, prometendo-lhe essa desforra de todos os embustes, as mentiras, as humilhações, a altivez com que ela se habituara a olhar para ele. Aquele olhar de sarcasmo, de ironia que ela lançava sobre ele, cada vez mais declarado. Chega, chega. Veneno, seria veneno.

            Lá atrás, do outro lado dos seus sentidos, algo falava da inexorabilidade, do depois. Mas aquela vozinha não importava. Tinha-se desencadeado, não havia volta, era o impasse, a beco sem saída. Ela tinha de morrer e seria naquela noite, depois de resfolegar algures, depois de se ter entregue uma vez mais a outro. Ele não chegava para ela, ninguém chegava, nada chegava. De repente subiu uma pressa, uma urgência de acabar depressa, de ver o quanto antes o que estava depois, o que seria o outro lado. Rasgou o topo do pacote, foi um bocado brusco, sujou os dedos. A tentação foi grande: encostou a ponta da língua ao dedo, procurou o gosto daquele pó, mas não sentiu quase nada, quase imaginou um sabor metálico, mais imaginado que efetivo, o pó não tinha sabor, era preciso que não tivesse sabor. Ergueu o pacote, pegou-lhe como numa calha e deixou-o escorrer para as chávenas. A euforia surpreendeu-o. Estava mesmo a fazê-lo. Podia voltar atrás, podia derrubar a chávena, evitá-lo ainda. Não. Não. Eu quero!

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