Lembrou-se do hábito, um deles, em que a vida deles
tinha desembocado. Todos dias à noite partilhavam um chá. Sempre preparado por
ele. Punha a chaleira ao lume, esperava de pé encostado à bancada, a luz branca
da cozinha criava um ambiente imputrescível, liso, direito. A casa àquela hora
respirava como um corpo entregue ao repouso. O chiado da chaleira despertava-o.
Com gestos lentos e distraídos tirava as chávenas do armário. Escolhia as
chávenas. Ela gostava da azul, ele preferia aquela com figuras geométricas
verdes. Em cada uma delas colocava um saquinho, Lúcia-lima, a ressonância
feminina do chá da noite. Deitava a água, prendendo o fio nas asas das chávenas
para que o saquinho não fosse com a água. Dispunha as chávenas no tabuleiro, às
vezes juntava um pratinho de bolachas e o doce de que ela gostava. Ela
censurava-o, mas debicava sempre as bolachas. Era daquelas da preservação da
beleza a todo o custo. Surpreendido viu a chávena à sua frente e ouviu o chiado
da chaleira. Fizera-o mecanicamente e a chávena fumegava à sua frente,
perfumando o ar com o cheiro verde da Lúcia-lima. Foi buscar o tabuleiro,
arranjado como sempre, voltou ao quarto.
O
tabuleiro em cima da mesa do lado dela. No bolso das calças sentiu o roçagar do
pacotinho de plástico com um pozinho branco, o pó inominável, o projeto
inominável. Dia das coisas sem nome. Tirou o embrulho do bolso, mexeu-lhe, fez
deslizar a pequena quantidade de pó de um lado para o outro, virou para cima, o
pó desceu, inverteu o movimento e o pó voltou a descer. Era outra vez a
inércia, a consciência da inevitabilidade. Desencadeou-se, era inexorável,
distraído, mastigou mais esta palavra. Gostava de palavras, detinha-se nelas.
Às vezes, quando ela perdia a paciência com ele, achando que se tinha
distraído, achando que estava lento, estava a mastigar palavras, a pensar
nelas. O pó espalhava-se por todo o pacote, é branco, parece plástico, qualquer
coisa artificial de tão branco. Fino, leve, parecia inofensivo. Veneno, veneno
para ela. Era inevitável. A humilhação vinha a crescer cada vez mais e o veneno
estava ali entre os dedos, prometendo-lhe essa desforra de todos os embustes,
as mentiras, as humilhações, a altivez com que ela se habituara a olhar para
ele. Aquele olhar de sarcasmo, de ironia que ela lançava sobre ele, cada vez
mais declarado. Chega, chega. Veneno, seria veneno.
Lá
atrás, do outro lado dos seus sentidos, algo falava da inexorabilidade, do
depois. Mas aquela vozinha não importava. Tinha-se desencadeado, não havia
volta, era o impasse, a beco sem saída. Ela tinha de morrer e seria naquela
noite, depois de resfolegar algures, depois de se ter entregue uma vez mais a
outro. Ele não chegava para ela, ninguém chegava, nada chegava. De repente
subiu uma pressa, uma urgência de acabar depressa, de ver o quanto antes o que
estava depois, o que seria o outro lado. Rasgou o topo do pacote, foi um bocado
brusco, sujou os dedos. A tentação foi grande: encostou a ponta da língua ao
dedo, procurou o gosto daquele pó, mas não sentiu quase nada, quase imaginou um
sabor metálico, mais imaginado que efetivo, o pó não tinha sabor, era preciso
que não tivesse sabor. Ergueu o pacote, pegou-lhe como numa calha e deixou-o
escorrer para as chávenas. A euforia surpreendeu-o. Estava mesmo a fazê-lo.
Podia voltar atrás, podia derrubar a chávena, evitá-lo ainda. Não. Não. Eu
quero!
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