O
chá
A
noite ia já alta, deitado sobre a cama repassava a vida a limpo, ia e vinha, ia
e vinha, desembocando sempre naquela mesma noite. Deitado sobre a cama, sentia
o corpo abandonado à inércia, sentia a falta de vontade, os membros pesados,
pesados, os olhos abertos, fixos no teto, mas sem o ver, o olhar, como tudo
nele, voltado para dentro, vendo-se a ir e a vir, a viajar no tempo, o seu
tempo.
Sozinho
há um par de horas, nenhum deles tinha voltado, saber-se sozinho não importava,
mas facilitava o que queria fazer. Com os outros em casa não deixaria de ser
possível, mas estando só era tudo mais fácil. Daqui a quinze minutos. Definir
um objetivo era importante, daí que tenha pensado em ir daqui a quinze minutos.
Enquanto esses escorressem, deixaria um pouco mais o corpo imóvel, sem se
voltar, sem se mexer, sabia-lhe bem, sabia que aqueles quinze minutos passariam
muito depressa, por isso procurou abstrair-se de novo e de novo repassar a vida
a limpo. Os olhos fechados, a imagem dela veio e foi fácil que viesse. Nela
permanecia tudo aquilo de que gostava, mas era para as mãos que os olhos
desciam e a macieza da pele tornou-se viva e palpável. Eram um pouquinho, muito
pouco papudas e macias, macias, a pele muito fina deixava sentir a carne a
palpitar e ele deixava-se ficar a afagá-las irresistivelmente, abandonando-se
às sensações que se espalhavam pela sua própria pele em círculos.
Quase
sem transição sabia que chegava a raiva e que aquela sensação quente nunca
seria bastante para a arrefecer. Os olhos fecharam-se com mais força, a cabeça
caiu para o lado, queria afastar-se, queria sair dali, mas já não podia, já
estava no círculo onde a raiva era um animal desenfreado, que debandava pelo
seu sangue, acelerando-lho e fazendo-o respirar com ruído. A palavra formou-se
numa pasta de saliva, mas ele não a deixou sair, não a soprou e fechou os
lábios com força. Não fosse ela escapar-lhe. Ainda não, ainda não, não podia
fazer nada antes do tempo. Agora desperto preparou-se para assistir à repetição
de tudo. Desde a primeira hora sabia que não era homem que chegasse para ela,
nela havia a força de toneladas de água em queda livre, por isso era vital que
se mexesse e fazia-o sempre, mesmo quando parada, falava, ria, mexia as mãos, o
cabelo sacudido, a madeixa que enrolava nos dedos enquanto falava, o sorriso
aberto e falava, falava sempre muito, completando qualquer espaço que estivesse
vazio, como se receasse coisas por preencher.
A
figura dela, sem ser bonita, prendia a atenção e foi assim com ele, e com todos
os outros que esvoaçavam à volta dela. Por qualquer estranha conjugação astral,
ela gostara dele, contra toda a lógica de duas pessoas que pareciam tão
afastadas como as duas margens de um rio. Preencheram todos os requisitos que a
corte enamorada pressupõe, picaram os clichés, e parecia amor. Como quem se
deixa ir, casaram, como quem se deixa ir, procriaram, como quem se deixa ir,
caíram no marasmo dos casais que permanecem unidos pelo hábito e o medo de
rotinas diferentes. Esta era uma dos rostos, uma das versões desta história.
Muito bom.
ResponderEliminarUm texto que cativa facilmente a atenção do leitor.
À medida que o lia, formaram-se as imagens necessárias na minha imaginação para sentir o ambiente e as emoções, o desassossego dos pensamentos.
Muito bom, mesmo.
António Lobo