Abriu os olhos e viu, agradado que nascia o dia, já
uma luz branca, uma claridade sucedia à luz amarela da rua. Passou-lhe pelo
espírito a vaga lembrança de que sempre tinha gostado daquele momento secreto
em que o dia sucede à noite. Como o seu sono a partir daí se tornava mais
calmo, como a luz apaziguava todas as angústias e ele se entregava inconsciente
nos braços de Morfeu. Poderia fazê-lo hoje, entregar-se a esse sono que tudo
apaga, esse irmão da morte. Pudesse alguém deixar assim a vida, virando-se para
o lado e apagando a consciência, sem dor, transitando sem o saber, transpondo o
portal secreto que não permitia saídas. Voltou outra vez a si, um sorriso
brincou-lhe nos lábios, perdia-se tão depressa nos seus pensamentos,
afundava-se de repente e de novo despertava, surpreendido com a facilidade com
que ia e vinha na sua consciência, como se dormisse depressa, como pequenos
transes inofensivos. Havia em si um interruptor que ligava e desligava sem ele
querer. Voltou-se de novo para a janela, a tímida luz que há pouco só se
adivinhava crescia, ganhava força, empurrava a noite, que se afastava. Aquele
cinza claro desaparecia e a luz ganhava um esplendor que nenhuma cortina podia
reter. Naquele instante, apagaram-se as luzes amarelas da rua, as árvores da
praça roçagaram agitadas pela brisa matutina e ele inspirou com força.
Ergueu-se e ficou sentando na cama, apoiou
as mãos no colchão, ela deve ter-se incomodado, porque se mexeu e uma réstia do
perfume dela chegou-lhe ao nariz. Absorveu-o e ficou um bocado à procura dele
para que se tornasse mais preciso. Olhou-a, adormecida, a quase beleza plena
que ela tinha prendeu-lhe a atenção. Sabia que ela só era mesmo bonita sob
alguma luz, sob algum ângulo, fazendo com que fosse preciso olhá-la com
atenção, se não a beleza não se via. Nisto, levantou-se. Alguma coisa crescia
nele, começava a borbulhar, ainda não fazia barulho, como aquelas bolhas que se
vão soltando do fundo da panela, antes que a água ferva, antes que se atinja o
ponto de ebulição.
Contornou a cama, pegou na chávena e
emborcou-a de uma vez, ouvia o barulho da sua garganta a degluti-lo, sentia o
líquido frio a descer por ele, parecia-lhe que uma pequena contração lhe
apertava o estômago, imaginou uma aspereza areada no fundo da chávena. Depois,
já sem saber que o fazia, pousou a chávena, e voltou a deitar-se. Daí a pouco
começaria o que tinha imaginado e o dia tinha nascido em pleno e ouviu ainda o
pipilar ténue dos primeiros pássaros. De repente disse em voz alta, mas sem que
ouvisse:
- Puta!
Não era de facto homem para ela.
ResponderEliminarIncapaz de tomar uma atitude, um gesto, de materializar o ódio nas palavras.
Seria assim mesmo a realidade, ou tudo não passava de uma invenção da sua mente mesquinha e atormentada?
Gostei.