quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Um dia como os outros (II)

         Um arrepio lembrou-lhe que estava na rua, reentrou rapidamente e sentiu o corpo a receber a mornidão da casa. Fechou a porta e subiu aos quartos. Arejou camas, bateu almofadas, apanhou pijamas que dobrou metodicamente. Abriu as persianas e uma luz pálida, que não alegrou a divisão, espalhou-se em volta. Mais tarde, havia de vir fazer as camas, mas não agora.
            Desceu e foi chegando até si o som dos filhos que saíam, ouviu o motor a trabalhar lá fora. A frase: “tchau, mãe” chegou-lhe aos ouvidos pontuada pelo afastamento deles. Chegou de novo à porta e o marido acenou-lhe. Acredita que lhe devolveu o gesto, mas não pode jurar, se lhe perguntassem juraria que sim, porque era assim todos os dias, exceto fins de semana e feriados. Voltou à cozinha, arrumou a loiça, sacudiu a toalha, inspirou um pouco mais profundamente, mas sem se aperceber que era isso que estava a fazer e atirou-se à limpeza daquele compartimento. Tinha de deixar tudo limpo antes de voltar aos quartos. Água, detergente, panos, esfregou, limpou, secou, sacudiu, voltou a pôr no sítio, arrastou bancos, despejou o lixo, aspirou, lavou. Num gesto reflexo muito seu, olhou e viu que estava bem. O seu mundo movia-se rotativamente no eixo que o sustentava e tudo era como sempre.
            Subiu as escadas e entregou-se mais uma vez sem hesitações, sem uma distração, sem uma pausa, àquilo que sabia que tinha de ser feito. Sacudiu, limpou, aprumou, endireitou edredões, ajeitou as cortinas milimetricamente, estendeu tapetes, alinhou-os com os móveis, calculou distâncias e desenhou simetrias. Um quase sorriso bailou-lhe nos lábios quando, antes de fechar a porta, se voltou e contemplou o resultado do seu esforço, estava tudo tão bem.

            Era cedo, trabalhara muito rápido e podia permitir-se uma pausa. Desceu até à cozinha e preparou um chá, forte e preto como gostava, foi para a sala e sentou-se a tomá-lo. Mas já a sombra da inércia a espicaçava, como podia parar quieta, sem as mãos ocupadas? Uma chávena de chá era pouca coisa para quem precisava de muito mais. Ligou a televisão e o som entrou na sala, enchendo-a completamente. Quando deu por si, olhava as suas mãos e tinha deixado de ouvir a televisão. As mãos estavam a envelhecer, não se notava muito, mas as mudanças na pele tornaram-se visíveis e olhou para aquelas mãos quase perplexa tão pouco estava habituada a reparar em si, a olhar-se, a saber-se ali. A maior parte das vezes, carregava consigo sem ter noção do fardo, do volume, da forma, que levava, como se ela não fizesse parte da sua vida. Só raramente aquela sensação de estranheza a surpreendia e dava consigo a pensar em si como alguém que existe. Franziu a testa, porque se lembrou que, nos últimos dias, algo a incomodava, de maneira imprecisa. Perceber o que era aliviou-a finalmente: era esta sensação de si que ultimamente a despertava. Era isso. E isso trazia-lhe uma angústia pequenina, mal se dava por ela, só agora tinha conseguido ver que estava lá já há algum tempo.

2 comentários:

  1. Continue Manuel.
    A rotina que se torna interessante, mais e mais, a medida que vamos lendo.
    Mulher que se observa, distante do corpo e dos gestos. O pensamento não está de todo em sintonia com os movimentos do corpo.
    Está criada a expectativa e o suspense na rotina doméstica. O que se irá passar de seguida? O que acontecerá? Pergunta-se o leitor e o personagem?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. António Lobo, captou bem o ambiente que quis criar: a ausência desta mulher nos gestos que repete todos os dias, quase mecanicamente. Obrigada pelo seu interesse e leitura. Espero que continue a acompanhar.

      Eliminar