terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Chá (II)

            Inevitavelmente, tudo tem o avesso, do lado dela a história era diferente, tinha uma pequena nuance, que não teria importância de maior não fossem duas pequeninas circunstâncias: conhecê-las e perceber que o incomodavam, como a roupa que não assenta bem no corpo, como um membro dormente. Não, não, estava a dizer mal, conseguia ser mais preciso, mesmo que, ao sê-lo, não pudesse mais mascarar a verdade: aquilo picava-o como um espinho grosso cravado entre a unha e a carne. Ela tinha outro homem. Correção: nunca tinha sido homem para ela, porque um só não chegava. Outra correção, porque era o dia da verdade: ela tinha outros homens.
            Não ia agora fazer o mea culpa, havia culpa? Deteve-se na palavra culpa. A raiva injetada nas veias mostrou-lhe que a culpa não era dele, questão resolvida. A culpa era dela. Havia a crónica feminina, o manual de qualquer mulher com listas de verificação dos erros que os machos embrutecidos sempre cometeram, desde os séculos dos séculos, contra as finas flores da feminilidade, recusando-se ao culto de Afrodite. As afrodites quando não cultuadas procuram outros sacerdotes, basta folhear as crónicas e verificar a validade desta teoria. Homem que não oficia é ornado com chifres. A palavra voltou a encher-lhe a boca como um vómito, ainda a segurou, era cedo.
            O dia de hoje tinha sido de festa, havia festa fora e dentro dela. A festa era um bom pretexto para as suas escapadelas. Palavra bem escolhida, não é amor, não era amor que a movia, era o sexo, sexo, sexo, e por causa dele se esgueirava. Ficou outra vez parado na palavra e ela encheu-se de significado, corpos em choque, rostos retorcidos, bocas abertas, mamas e cus. Era ela. Ninfomaníaca? As palavras eram curiosas. Qual seria a mais indicada, ninfomaníaca? Haveria outra? Havia a outra, chula, mas ainda era cedo. Ela tinha ficado na festa, quando lhe disse que vinha embora, porque cansado, fora a razão que lhe dera, porque era um chato, a razão que ela tinha compreendido, porque precisava de se preparar, a razão porque tinha vindo. Hoje era dia de festa e era o dia da sua vingança, uma festa também, com pratos frios, mas igualmente notáveis. Seria hoje, para isso se tinha vindo a preparar. Abriu os olhos, procurou os números luminosos do relógio, tinham passado mais do que quinze minutos, ele sabia que o tempo ia sempre à frente.

            Mais um bocadinho, mais cinco minutos, ainda há tempo. Começou a varrer a sua vontade, juntou-a num montinho, pós espalhados nos vãos das portas, nadas, fiapos cinzentos, cotão, mas juntos faziam um bolo, que comeu de um trago. Deu um impulso, ergueu-se de repente, puxou as pernas para o lado, sentou-se e pousou os pés no chão, sorveu o ar e fincou os cotovelos nos joelhos, pôs a cabeça sobre as mãos. Deu-se conta das costas curvadas, sentiu os músculos encolhidos e a tensão nos ombros. Correção: esticou as costas, endireitou-as, abriu os braços, deixou-os cair ao lado do corpo, as mãos tocaram o tecido, era macio como uma carne que lateja, macio, macio, macio, deixou-se ficar a afagá-lo. Respirou fundo, mais fundo, expeliu o ar, ouviu o som da sua expiração e sentiu-se como uma arma engatilhada. Levantou-se, uma ligeira tontura toldou-lhe o olhar, uma sombra escura passou. Pressionou os olhos, abriu-os e pestanejou várias vezes, viu as sombras do quarto, viu o retângulo da janela iluminada com a luz amarela da rua, viu as sombras das árvores da praça desenhadas nas paredes, agitando-se. Lá fora era uma noite de verão, morna, para a qual era bom sair. Gostou do quarto assim na penumbra, não acender a luz, a luz é muito crua, podia enfraquecer-lhe a coragem para a vingança. Já não era cedo, era agora.

Sem comentários:

Enviar um comentário