Inevitavelmente,
tudo tem o avesso, do lado dela a história era diferente, tinha uma pequena
nuance, que não teria importância de maior não fossem duas pequeninas
circunstâncias: conhecê-las e perceber que o incomodavam, como a roupa que não
assenta bem no corpo, como um membro dormente. Não, não, estava a dizer mal,
conseguia ser mais preciso, mesmo que, ao sê-lo, não pudesse mais mascarar a
verdade: aquilo picava-o como um espinho grosso cravado entre a unha e a carne.
Ela tinha outro homem. Correção: nunca tinha sido homem para ela, porque um só
não chegava. Outra correção, porque era o dia da verdade: ela tinha outros
homens.
Não
ia agora fazer o mea culpa, havia
culpa? Deteve-se na palavra culpa. A raiva injetada nas veias mostrou-lhe que a
culpa não era dele, questão resolvida. A culpa era dela. Havia a crónica
feminina, o manual de qualquer mulher com listas de verificação dos erros que
os machos embrutecidos sempre cometeram, desde os séculos dos séculos, contra
as finas flores da feminilidade, recusando-se ao culto de Afrodite. As
afrodites quando não cultuadas procuram outros sacerdotes, basta folhear as
crónicas e verificar a validade desta teoria. Homem que não oficia é ornado com
chifres. A palavra voltou a encher-lhe a boca como um vómito, ainda a segurou,
era cedo.
O
dia de hoje tinha sido de festa, havia festa fora e dentro dela. A festa era um
bom pretexto para as suas escapadelas. Palavra bem escolhida, não é amor, não
era amor que a movia, era o sexo, sexo, sexo, e por causa dele se esgueirava.
Ficou outra vez parado na palavra e ela encheu-se de significado, corpos em
choque, rostos retorcidos, bocas abertas, mamas e cus. Era ela. Ninfomaníaca?
As palavras eram curiosas. Qual seria a mais indicada, ninfomaníaca? Haveria
outra? Havia a outra, chula, mas ainda era cedo. Ela tinha ficado na festa,
quando lhe disse que vinha embora, porque cansado, fora a razão que lhe dera,
porque era um chato, a razão que ela tinha compreendido, porque precisava de se
preparar, a razão porque tinha vindo. Hoje era dia de festa e era o dia da sua
vingança, uma festa também, com pratos frios, mas igualmente notáveis. Seria
hoje, para isso se tinha vindo a preparar. Abriu os olhos, procurou os números
luminosos do relógio, tinham passado mais do que quinze minutos, ele sabia que
o tempo ia sempre à frente.
Mais
um bocadinho, mais cinco minutos, ainda há tempo. Começou a varrer a sua
vontade, juntou-a num montinho, pós espalhados nos vãos das portas, nadas,
fiapos cinzentos, cotão, mas juntos faziam um bolo, que comeu de um trago. Deu
um impulso, ergueu-se de repente, puxou as pernas para o lado, sentou-se e
pousou os pés no chão, sorveu o ar e fincou os cotovelos nos joelhos, pôs a
cabeça sobre as mãos. Deu-se conta das costas curvadas, sentiu os músculos
encolhidos e a tensão nos ombros. Correção: esticou as costas, endireitou-as,
abriu os braços, deixou-os cair ao lado do corpo, as mãos tocaram o tecido, era
macio como uma carne que lateja, macio, macio, macio, deixou-se ficar a afagá-lo.
Respirou fundo, mais fundo, expeliu o ar, ouviu o som da sua expiração e
sentiu-se como uma arma engatilhada. Levantou-se, uma ligeira tontura
toldou-lhe o olhar, uma sombra escura passou. Pressionou os olhos, abriu-os e
pestanejou várias vezes, viu as sombras do quarto, viu o retângulo da janela
iluminada com a luz amarela da rua, viu as sombras das árvores da praça
desenhadas nas paredes, agitando-se. Lá fora era uma noite de verão, morna, para
a qual era bom sair. Gostou do quarto assim na penumbra, não acender a luz, a
luz é muito crua, podia enfraquecer-lhe a coragem para a vingança. Já não era
cedo, era agora.
Sem comentários:
Enviar um comentário