quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar (III)

Dia 3 – 06-08-2014

            Como não podia deixar de ser, a noite foi de trovoada. Creio que ainda não houve férias em que não apanhássemos pelo menos uma noite de trovoada. A experiência da trovoada em terras altas para pessoas meridionais como nós tem grande impacto. Se levarmos em conta a validade científica da contagem dos segundos que decorrem entre a visualização do relâmpago e o som da trovoada, tornou-se óbvio que a trovoada estava bem longe, mas o som dos trovões ecoava pelas gargantas e desfiladeiros e prolongava-se por muito tempo. Foi assim uma tempestade com ar épico. Mas a tenda aguentou-se bem e não houve danos materiais. Clima de montanha é assim, imprevisível e chuvoso.
Manhã gloriosa, ar lavado, nuvens no céu, mas sem grande aspecto de chuva. Dada a proximidade a que estávamos da Ruta del Cares (a 7 km) e ainda à nossa expectativa, que era grande, decidimos fazê-la neste dia. Assim, depois do pequeno-almoço, equipámo-nos com umas mochilas com comida e água e lá fomos. Seguimos de carro em direção a Poncebos. Mais uma estrada estreita de montanha à beira da garganta por onde serpenteia o Rio Cares. Li algures que é um dos rios mais selvagens dos Picos da Europa. O que me surpreendeu foi a como a noite anterior aumentou o seu caudal de forma visível a olho nu. Imagino isto no inverno e quando a neve derrete. A cerca de 2 km de Poncebos, há dois orientadores de trânsito, colocados junto a um parque de estacionamento enorme, que nos informam que os parques em Poncebos já estão cheios e que será melhor deixarmos já lai o carro. Também nos disseram que às onze passaria um autocarro que nos levaria até Poncebos. O entusiasmo é um grande combustível. Não quisemos esperar e fizemos essa distância a pé, mas não sozinhos. Começo a acreditar que a Ruta del Cares é mesmo bastante concorrida, há imensa gente a preparar-se para o mesmo que nós, mas temos que admitir que muito melhor equipados, quer com roupas, quer com equipamentos de apoio. Vou confirmando esta ideia de que os percursos pedestres são um desporto muito popular por aqui.
Cruzamos o rio na ponte de Poncebos, junto à central elétrica, onde é visível o momento em que parte do caudal do rio lhe é devolvido. Passo a explicar. A Ruta del Cares é um caminho cavado na montanha que acompanha o canal construído entre 1919 e 1922, desde a povoação leonesa de Caín até à vila de Pocebos, nas Astúrias, levando a àgua do Rio Cares por um canal cavado na montanha, ora a descoberto, ora correndo no seu interior, durante 12 Km. Era este o percurso que nos propúnhamos fazer.
Em Poncebos havia grandes cartazes a anunciar a oportunidade de comprar o bilhete de autocarro que nos permitiria regressar de Caín. Não quisemos comprar, nem nos quisemos informar, prova da nossa impreparação e de algum espírito aventureiro, que, alguns dias depois, me parece pura irresponsabilidade. Mas temos tido sempre sorte, é o que vale.
Assim demos com o início do percurso, cuja placa informativa nos dizia que duraria cerca de seis horas, nada de mais. Ali tinham início outros dois percursos, o da Reconquista, com uma duração de nove horas e um outro para o Refúgio de Cabrones, mais um Pico bem concorrido, este com uma duração de 5h45min. Definitivamente aqui caminha-se a sério.
Claro que o percurso começa logo a subir por um caminho pedregoso e bastante árido, que ao fim da primeira hora de caminho me deixou completamente sem fôlego. O sol da montanha brilha inclemente e lembro-me de um senhor em Cabrales nos ter dito que estava um bom dia para fazer a rota, espero que aquilo não fosse irónico.
As vistas começam desde logo a deslumbrar-nos. São as paredes rochosas que se erguem à esquerda e à direita, íngremes, caprichosas, verdadeiros tratados geológicos que não consigo interpretar completamente, ah, mas queria muito. Torturo o meu filho, que acabou o 11º ano da área de ciências, para me ir explicando algumas coisas, a que ele vai atendendo com alguma impaciência. Aqui vale mesmo a pena usar a máquina fotográfica. Vemos por cima de nós algumas cabras selvagens, ouvimos o piar bem característico das águias, ou outras aves de rapina, que a biologia também não é a minha especialidade. El alguns pontos, o ruído das águas, que não chegamos a conseguir ver, sobe até nós, afirmando o poder do rio que há milhares de anos amolece esta pedra dura.


















Quando se diz que este é um dos percursos mais concorridos é mesmo verdade. Avancei até a hipótese de que as praias das Astúrias são tão calmas, porque a maioria das pessoas está a fazer este percurso de montanha. Arriscaria até a comparar a Ruta com o paredão da Nazaré em Agosto. Havia jovens casais a carregar bebés em mochilas às costas, com um prático protetor para o sol. Havia gente corajosa que faz o percurso a correr. Havia pessoas bem mais velhas do que eu a caminhar animadamente e a ultrapassar-me com uma velocidade que fez com que nunca mais os visse. Havia pessoas em sentido ascendente e em sentido descendente. Cruzámo-nos com uma família completa: um casal, dois filhos, que não teriam mais do que cinco anos, e os avós, iam caminhando um pouco mais devagar do que a maioria das pessoas e animando as crianças com a aproximação de uma gruta, que é quando o percurso avança pelo interior da rocha. Não me lembro de todos os exemplos que me surpreenderam, mas eram diversos e diferenciados.
De vez em quando, o canal corria a céu aberto. Trepávamos para ver a água que deslizava rapidamente, a uma boa altura e transparente. Com o calor que estava, ainda bem que no canal se ia repetindo o aviso da proibição de tomar banho por se tratarem de águas rápidas, a tentação era muito grande. Em alguns pontos, a parede abria uma brecha mínima de onde jorrava um fio de água para o caminho e era ver-nos a aproveitar para nos molharmos um bocadinho.
Emocionante foi também o momento em que se assinalou que tínhamos saído das Astúrias e já estávamos em território leonês.

Fomos pontuando a caminhada com paragens, ora para apreciar o espetáculo natural esmagador que tínhamos perante os olhos, ora para comermos, ora para aproveitarmos umas breves tréguas de sombra, mas sempre fascinados e encantados, sim, e também cansados.

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