quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

365 dias depois

365 dias depois

            O autocarro 42 entrou na garagem, os passageiros que, como eu, esperavam na linha 6 começaram a levantar-se, a juntar as suas coisas e a encaminharem-se para a zona de embarque. Ninguém parecia ter muita pressa, eu também não. Tenho todo o tempo da minha vida para fazer esta viagem. Ninguém sabe, desta vez não me quis precipitar. Ponderei muito bem e a minha decisão está tomada, sei que não vou recuar e que vou ser bem sucedida.
            Subo os degraus do autocarro, apresento o bilhete ao motorista que não me olha. Somos indevassáveis. Se ele soubesse… talvez um dia venha a ouvir falar do meu caso e nunca o consiga ligar a esta mulher cuidadosamente arranjada que lhe estendeu um bilhete para ele picar. Não pode saber o significado deste bilhete, o princípio de uma viagem arriscada e estranha. Como poderia saber? Não trazemos as nossas resoluções pintadas na testa, com uma seta luminosa a piscar… Caminho lentamente pelo corredor até encontrar um lugar vago junto à janela, rezo para que o autocarro não encha, não quero companhia. Gosto de me isolar dos outros durante a viagem, olhar pelo vidro, ver as paisagens desfiadas nos meus olhos, imaginar vidas e compor histórias. Não suporto o convívio forçado em espaços exíguos, a boa educação dos sorrisos de conveniência, as convenções sociais, mas volto-me toda para o exterior e nunca, como em viagem, me interesso tanto pelos outros. Isso faz com que prefira viajar de noite. Ver as luzes das casas acesas, vislumbrar um toque da decoração, um vulto furtivo numa janela, reconhecer espaços: cozinha, sala quarto, cozinha, sala, quarto. Agradeço às pessoas que deixam as cortinas afastadas. No entanto, interesso-me como quem se interessa por uma abstração, é um exercício mental que não carece de reciprocidade. Não quero conhecer aquelas pessoas.
            Encontrado o lugar, arrumo o pequeno saco no compartimento em cima. Está quase vazio, uma carteira, os meus documentos – vou precisar deles – uma garrafa de água. Oiço as conversas que me rodeiam nitidamente, mas ninguém me dá mais atenção do que a que quero e que é a que merece uma mulher que viaja sozinha. Com cuidado, arrumo-me no assento. O meu corpo que vem recuperando lentamente acusa o esforço, doem-me ainda certos movimentos, ainda me sinto presa. Foi uma convalescença difícil e muito demorada. Estive tão maltratada, tão ferida. A autonomia de que disponho hoje é-me preciosa, gosto de me sentir livre outra vez. Recosto-me e volto a ajeitar-me à procura de um conforto que não pode ser total, mas encontrei-o. Estou instalada e sem querer solto um suspiro profundo que estava entalado no meu peito. Liberto-me. Tiro um pequeno aparelho do bolso, ponho os fones, e a música de Chopin, noturna, enche-me os ouvidos. Para além do prazer do meu compositor favorito, afastarão quem quiser meter conversa.
            Sinto o autocarro estremecer enquanto, lento, se põe em movimento. O motorista manobra com cuidado no espaço apertado da garagem. Quando sai para o sol quente da tarde, a luminosidade conforta-me. Olho pelo vidro e vejo os carros parados na faixa contrária. Uma mulher jovem fala com exuberância, ri e gesticula. Está ao telefone, vejo o fio do auricular. Parece louca numa cela de isolamento, alienada. É bonita. As árvores do espaço que separa as faixas de rodagem têm o tronco escuro, muito escuro, a folhagem pouco densa e as campânulas violáceas lançam na rua uma miríade de sombras que os transeuntes procuram para se aliviar do calor sufocante. Digo mentalmente o nome das árvores, porque sempre gostei da sonoridade: jacarandás. E a palavra faz-me viajar para um sítio distante, exótico. Não parecem de cá, os jacarandás, mas abundam nas ruas desta cidade.
O autocarro avança devagar, como eu gosto, e eu observo avidamente a vida que se desenrola à minha frente, como se estivesse num filme anacronicamente mudo e impossivelmente tecnicolor, o som do piano acentua a inverosimilhança. Dois jovens parados no passeio beijam-se carinhosamente. Têm um ar tão jovem, ainda são uma promessa e enterneço-me com aquele amor despretensioso, sem querer ser ostensivo. São bonitos assim na fotografia que lhe tiro com a minha retina. Não quero saber do negativo da imagem, fico-me pela fotografia revelada. Deixo-os para trás, não me volto para os olhar, porque já atento noutro quadro.
            É o amor outra vez. Um casal de idade avança devagar pelo passeio. É nítida a atenção que ele lhe dispensa, pelo modo discreto como lhe segura o braço, ela tem mesmo um ar de porcelana fina, de loiça antiga de boa qualidade. Está criteriosamente arranjada. Deve ter sido muito, muito bonita, porque ainda é. O penteado lembra os anos setenta, num apanhado muito bonito, veste uma blusinha branca que é toda uma sugestão de leveza e frescura, a saia de pintinhas azuis é definitivamente acertada para o seu figurino. Leva na mão uma flor (rosa?), talvez de um tom marfim. Tudo compõe este quadro delicado. Entram numa pastelaria que combina com eles. Ele dá-lhe a passagem com o charme que me transporta para um filme antigo. Já os imagino a tomarem chá, talvez à inglesa, talvez de propósito haja scones. À noite vão sair, o tempo vai estar maravilhoso e eles vão a um recital, tem de ser um recital de música clássica, a peça há de ser de Schumann e a imagem de Clara pairará nas notas musicais. E mais uma vez me enterneço.

            Regresso a mim, volto a ver o mundo concreto lá fora e suspendo o meu devaneio. Sou surpreendida pela zona da cidade onde o autocarro se imobilizou na longa fila para um semáforo. Olho pelo vidro e vejo uma rapariga muito jovem que deixei ali há tantos anos. Ela vem até mim sem eu querer, a minha memória devolve-ma tão concreta que quase lhe podia tocar. Deixo que as recordações fluam e viajo no tempo e aqueço-me naquela lembrança.

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