365 dias depois
O autocarro 42 entrou na garagem, os
passageiros que, como eu, esperavam na linha 6 começaram a levantar-se, a
juntar as suas coisas e a encaminharem-se para a zona de embarque. Ninguém
parecia ter muita pressa, eu também não. Tenho todo o tempo da minha vida para
fazer esta viagem. Ninguém sabe, desta vez não me quis precipitar. Ponderei
muito bem e a minha decisão está tomada, sei que não vou recuar e que vou ser
bem sucedida.
Subo os degraus do autocarro,
apresento o bilhete ao motorista que não me olha. Somos indevassáveis. Se ele
soubesse… talvez um dia venha a ouvir falar do meu caso e nunca o consiga ligar
a esta mulher cuidadosamente arranjada que lhe estendeu um bilhete para ele
picar. Não pode saber o significado deste bilhete, o princípio de uma viagem
arriscada e estranha. Como poderia saber? Não trazemos as nossas resoluções
pintadas na testa, com uma seta luminosa a piscar… Caminho lentamente pelo
corredor até encontrar um lugar vago junto à janela, rezo para que o autocarro
não encha, não quero companhia. Gosto de me isolar dos outros durante a viagem,
olhar pelo vidro, ver as paisagens desfiadas nos meus olhos, imaginar vidas e
compor histórias. Não suporto o convívio forçado em espaços exíguos, a boa
educação dos sorrisos de conveniência, as convenções sociais, mas volto-me toda
para o exterior e nunca, como em viagem, me interesso tanto pelos outros. Isso
faz com que prefira viajar de noite. Ver as luzes das casas acesas, vislumbrar
um toque da decoração, um vulto furtivo numa janela, reconhecer espaços:
cozinha, sala quarto, cozinha, sala, quarto. Agradeço às pessoas que deixam as
cortinas afastadas. No entanto, interesso-me como quem se interessa por uma
abstração, é um exercício mental que não carece de reciprocidade. Não quero
conhecer aquelas pessoas.
Encontrado o lugar, arrumo o pequeno
saco no compartimento em cima. Está quase vazio, uma carteira, os meus
documentos – vou precisar deles – uma garrafa de água. Oiço as conversas que me
rodeiam nitidamente, mas ninguém me dá mais atenção do que a que quero e que é
a que merece uma mulher que viaja sozinha. Com cuidado, arrumo-me no assento. O
meu corpo que vem recuperando lentamente acusa o esforço, doem-me ainda certos
movimentos, ainda me sinto presa. Foi uma convalescença difícil e muito
demorada. Estive tão maltratada, tão ferida. A autonomia de que disponho hoje é-me
preciosa, gosto de me sentir livre outra vez. Recosto-me e volto a ajeitar-me à
procura de um conforto que não pode ser total, mas encontrei-o. Estou instalada
e sem querer solto um suspiro profundo que estava entalado no meu peito. Liberto-me.
Tiro um pequeno aparelho do bolso, ponho os fones, e a música de Chopin,
noturna, enche-me os ouvidos. Para além do prazer do meu compositor favorito,
afastarão quem quiser meter conversa.
Sinto o autocarro estremecer
enquanto, lento, se põe em movimento. O motorista manobra com cuidado no espaço
apertado da garagem. Quando sai para o sol quente da tarde, a luminosidade
conforta-me. Olho pelo vidro e vejo os carros parados na faixa contrária. Uma
mulher jovem fala com exuberância, ri e gesticula. Está ao telefone, vejo o fio
do auricular. Parece louca numa cela de isolamento, alienada. É bonita. As árvores
do espaço que separa as faixas de rodagem têm o tronco escuro, muito escuro, a
folhagem pouco densa e as campânulas violáceas lançam na rua uma miríade de
sombras que os transeuntes procuram para se aliviar do calor sufocante. Digo
mentalmente o nome das árvores, porque sempre gostei da sonoridade: jacarandás.
E a palavra faz-me viajar para um sítio distante, exótico. Não parecem de cá,
os jacarandás, mas abundam nas ruas desta cidade.
O autocarro avança devagar, como eu gosto, e eu observo avidamente a vida
que se desenrola à minha frente, como se estivesse num filme anacronicamente
mudo e impossivelmente tecnicolor, o som do piano acentua a inverosimilhança.
Dois jovens parados no passeio beijam-se carinhosamente. Têm um ar tão jovem,
ainda são uma promessa e enterneço-me com aquele amor despretensioso, sem
querer ser ostensivo. São bonitos assim na fotografia que lhe tiro com a minha
retina. Não quero saber do negativo da imagem, fico-me pela fotografia
revelada. Deixo-os para trás, não me volto para os olhar, porque já atento
noutro quadro.
É o amor outra vez. Um casal de
idade avança devagar pelo passeio. É nítida a atenção que ele lhe dispensa,
pelo modo discreto como lhe segura o braço, ela tem mesmo um ar de porcelana
fina, de loiça antiga de boa qualidade. Está criteriosamente arranjada. Deve
ter sido muito, muito bonita, porque ainda é. O penteado lembra os anos setenta,
num apanhado muito bonito, veste uma blusinha branca que é toda uma sugestão de
leveza e frescura, a saia de pintinhas azuis é definitivamente acertada para o
seu figurino. Leva na mão uma flor (rosa?), talvez de um tom marfim. Tudo compõe
este quadro delicado. Entram numa pastelaria que combina com eles. Ele dá-lhe a
passagem com o charme que me transporta para um filme antigo. Já os imagino a
tomarem chá, talvez à inglesa, talvez de propósito haja scones. À noite vão sair, o tempo vai estar maravilhoso e eles vão
a um recital, tem de ser um recital de música clássica, a peça há de ser de
Schumann e a imagem de Clara pairará nas notas musicais. E mais uma vez me
enterneço.
Regresso a mim, volto a ver o mundo
concreto lá fora e suspendo o meu devaneio. Sou surpreendida pela zona da
cidade onde o autocarro se imobilizou na longa fila para um semáforo. Olho pelo
vidro e vejo uma rapariga muito jovem que deixei ali há tantos anos. Ela vem até
mim sem eu querer, a minha memória devolve-ma tão concreta que quase lhe podia
tocar. Deixo que as recordações fluam e viajo no tempo e aqueço-me naquela
lembrança.
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