terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

365 dias depois (IV)

            Descemos uma rua estreita e muito inclinada que termina numa praia. Sinto vividamente os movimentos do autocarro, quase travo ao mesmo tempo que o motorista. O meu corpo inclina-se para a frente por causa da travagem progressiva. O volante é rodado em movimentos amplos e bem desenhados, prende depois de ter completado a rotação. O homem que o conduz também inclina o seu corpo. Somos uma nova espécie de árvores e outros os ventos que nos vergam. Aperto uma mão na outra e todo o meu corpo se retesa de tensão. Estou perto. Há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, fiz este mesmo percurso. A memória é tão forte e tão clara que confundo os tempos e o hoje é o ontem. Toda a cena é uma repetição em câmara lenta. Posso viver de olhos fechados a partir daqui, sei exatamente os tempos, o cronograma, tenho quase os passos contados. O autocarro faz uma curva muito apertada para entrar na garagem do fim da linha, eis o ligeiro sobressalto e o rangido das molas da suspensão quando transpõe o limite dos portões que encerram a garagem. Entra-me pelas narinas o cheiro acre e enjoativo a gasóleo que paira no ar e que nada parece poder retirar das garagens. Em criança, este cheiro era o suficiente para me fazer vomitar. Mais uma curva ampla, primeiro para a direita e depois para a esquerda, linha oito. Um grande relógio de parede, redondo e branco marca dezoito horas e quinze minutos. Há uma diferença de alguns minutos em relação ao dia do passado. Uma sacudidela breve e súbita indica que parámos. As pessoas à minha volta levantam-se com lentidão. Retiram volumes, alongam discretamente o corpo, soltam-se alguns risos, há conversas abafados que não compreendo, enquanto outras são terminadas à pressa e numa oitava mais alta do que deviam. Também eu retiro o meu saco. Penduro-o no ombro. Encaminho-me para a saída, desço os degraus e o cheiro é mais forte, quase insuportável. Saio dali mesmo para a rua. Está vento e os cheiros iodados do mar chegam até mim. Sorvo-os com gratidão, enquanto inclino a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. Afasto-me rapidamente, viro à direita no fim da rua e sigo por um passeio largo que corre perpendicular ao mar.

            É quase o fim do dia de praia. Há imensa gente nas ruas, um vozear contínuo rodeia-me. As pessoas com que me cruzo obrigam-me a reduzir o meu passo. Sem que dê conta, aquele bulício estival interfere comigo e caminho com um ligeiro sorriso nos lábios, quase esquecida de mim e do que aqui me trouxe. Não faz mal, tudo estará no sítio certo assim que for preciso e eu também estarei a horas no meu encontro comigo mesmo. Por agora, posso deixar-me ir. Paira ainda no ar um cheiro que sempre relacionei com o do creme Nívea que usava em criança. As peles queimadas do sol fazem os olhos dos outros mais brilhantes, toda a gente parece tão feliz, tão acompanhada, tão cheia de vida, o que me impressiona. Pequenas lojas de artesanato oferecem imagens deste lugar em diferentes suportes, nas toalhas de banho, nas toalhas de mesa, nas camisolas, nas canecas, nas bases de copo: uma língua de mar muito extensa, um areal vasto, ondas perfeitas e ao fundo um promontório que entra pelo mar adentro quase a perder de vista, um cabo, finisterra. O cabo do fim. 

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