Descemos uma rua estreita e muito
inclinada que termina numa praia. Sinto vividamente os movimentos do autocarro,
quase travo ao mesmo tempo que o motorista. O meu corpo inclina-se para a
frente por causa da travagem progressiva. O volante é rodado em movimentos
amplos e bem desenhados, prende depois de ter completado a rotação. O homem que
o conduz também inclina o seu corpo. Somos uma nova espécie de árvores e outros
os ventos que nos vergam. Aperto uma mão na outra e todo o meu corpo se retesa
de tensão. Estou perto. Há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, fiz este
mesmo percurso. A memória é tão forte e tão clara que confundo os tempos e o
hoje é o ontem. Toda a cena é uma repetição em câmara lenta. Posso viver de
olhos fechados a partir daqui, sei exatamente os tempos, o cronograma, tenho
quase os passos contados. O autocarro faz uma curva muito apertada para entrar
na garagem do fim da linha, eis o ligeiro sobressalto e o rangido das molas da
suspensão quando transpõe o limite dos portões que encerram a garagem. Entra-me
pelas narinas o cheiro acre e enjoativo a gasóleo que paira no ar e que nada
parece poder retirar das garagens. Em criança, este cheiro era o suficiente
para me fazer vomitar. Mais uma curva ampla, primeiro para a direita e depois
para a esquerda, linha oito. Um grande relógio de parede, redondo e branco
marca dezoito horas e quinze minutos. Há uma diferença de alguns minutos em
relação ao dia do passado. Uma sacudidela breve e súbita indica que parámos. As
pessoas à minha volta levantam-se com lentidão. Retiram volumes, alongam
discretamente o corpo, soltam-se alguns risos, há conversas abafados que não
compreendo, enquanto outras são terminadas à pressa e numa oitava mais alta do
que deviam. Também eu retiro o meu saco. Penduro-o no ombro. Encaminho-me para
a saída, desço os degraus e o cheiro é mais forte, quase insuportável. Saio
dali mesmo para a rua. Está vento e os cheiros iodados do mar chegam até mim. Sorvo-os
com gratidão, enquanto inclino a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. Afasto-me
rapidamente, viro à direita no fim da rua e sigo por um passeio largo que corre
perpendicular ao mar.
É quase o fim do dia de praia. Há
imensa gente nas ruas, um vozear contínuo rodeia-me. As pessoas com que me
cruzo obrigam-me a reduzir o meu passo. Sem que dê conta, aquele bulício
estival interfere comigo e caminho com um ligeiro sorriso nos lábios, quase
esquecida de mim e do que aqui me trouxe. Não faz mal, tudo estará no sítio
certo assim que for preciso e eu também estarei a horas no meu encontro comigo
mesmo. Por agora, posso deixar-me ir. Paira ainda no ar um cheiro que sempre
relacionei com o do creme Nívea que usava em criança. As peles queimadas do sol
fazem os olhos dos outros mais brilhantes, toda a gente parece tão feliz, tão
acompanhada, tão cheia de vida, o que me impressiona. Pequenas lojas de
artesanato oferecem imagens deste lugar em diferentes suportes, nas toalhas de
banho, nas toalhas de mesa, nas camisolas, nas canecas, nas bases de copo: uma
língua de mar muito extensa, um areal vasto, ondas perfeitas e ao fundo um
promontório que entra pelo mar adentro quase a perder de vista, um cabo,
finisterra. O cabo do fim.
Sem comentários:
Enviar um comentário