domingo, 16 de fevereiro de 2014

365 dias depois (III)

            Estive longe algum tempo, o autocarro já saiu da autoestrada. Segue por uma estrada que é bonita, ladeada de plátanos, corre sobre uma elevação de que se avista uma vale. A perder de vista, terrenos agrícolas e casas dispersas. Alguns animais. A cidade ficou lá atrás. A cadência do andamento vai-me entorpecendo. Fecho os olhos e entro num estado de semi-vigília que não me deixa entrar num sono profundo. A dor no pescoço desperta-me, é preciso que me ajeite melhor. A dor física tornou-se a materialização de todas as outras dores. Diz-se que só experienciamos uma dor de cada vez, mas a dor física compatibiliza-se com o sofrimento e a angústia que me vão torturando. As fraturas nos ossos curaram-se, os rasgões na pele desvaneceram-se, os golpes profundos fecharam-se e deixaram linhas pelo corpo que contam a minha história. A ansiedade e a angústia, pelo contrário, só sabem crescer, alimentam-se da minha vontade, esgotando-a pouco a pouco e vou mirrando dentro de mim. Por isso não me importo que o pescoço me doa, que tenha que me mexer devagar e com cuidado, porque os meus ossos ainda estão a consolidar-se uns nos outros, porque há linhas no meu corpo que continuam a doer se lhe toco, só na pele não restam sinais. As crostas das escoriações foram caindo e a pele regenerou-se. Eu, essa abstração que habita em mim, não sou capaz de me regenerar. Enfio a mão por debaixo da manga da blusa que trago vestida e procuro a cicatriz. É comprida, tem um toque estranho, faz um relevo que percorro com os dedos, conto as marcas dos pontos, são dez. Já não me dói aqui. Sei a cor sem olhar, é rosa pálido. Há outras assim no meu corpo, desenhando um mapa que não me guia para lado nenhum, linhas sem continuidade, interrompidas, um ato falhado. Vou deslizando os dedos pela cicatriz, é um tique que ganhei, como quando se roda um anel no dedo só para se manter as mãos ocupadas enquanto se pensa.
            A direção que o autocarro toma coloca o sol do lado da minha janela. A luz é demasiado forte. Corro as cortinas e a penumbra conforta-me. Consigo recostar-me e volto a fechar os olhos, encosto com mais cuidado a cabeça no vidro, apoio-me na mão, o cotovelo fincado no braço do banco. Descanso. A mente vagueia outra vez. Agora começo a ficar ansiosa pelo fim da viagem, se pudesse apressaria o andamento. Imagino o autocarro em marcha de urgência pela estrada, os carros a encostarem, a velocidade a aumentar. Entrego-me a um jogo que fazia quando era criança, como se pudesse ver-me a deslocar-me no tempo, ver o tempo a decorrer. Daqui a pouco mais de meia hora terei chegado, vejo-me, daqui, a descer do autocarro, a encarar a brancura do dia, a encaminhar-me por uma rua que desce em direção à praia, olho para trás e vejo-me sentada no autocarro à espera que os grãos de areia se escoem na ampulheta. Daqui a trinta minutos estarei a fazer o que antevejo e depois passa num instante. A impaciência borbulha-me no sangue, acelera-o nas veias. É preciso que fique calma. Já sei! Procuro na lista de música o Verão de Vivaldi. Os primeiros acordes prendem-me logo a atenção. Vou acompanhando as notas, os andamentos e esqueço-me de mim.
            O autocarro entra agora numa pequena vila. É a última paragem antes de chegarmos ao destino. Sei que nem chegará a desligar-se o motor. Será uma pausa breve. Abro de novo as cortinas. O dia impiedoso de verão vai cedendo. O sol já se inclina. Lá fora, o ar deve ser mais respirável. Ao lado do ponto de paragem há um jardim, plano, arborizado. Combina tão bem com a música que oiço. Faço mais um quadro, vejo os insetos que volteiam no ar, duas meninas correm, mesmo daqui consigo perceber que estão um bocadinho transpiradas. Cruzam-se perigosamente com uma bicicleta. Há uma esplanada que está cheia. Foco-me num homem sozinho que lê o jornal, tem uma chávena de café à sua frente, um copo com água. Os cabelos são ligeiramente compridos, já com alguns brancos. Está completamente absorto na leitura. É interessante. Se eu saísse, levantaria os olhos? Entretanto vejo uma senhora que desceu do autocarro, retira a bagagem, uma jovem encaminha-se para ela. Beijam-se e abraçam-se. Estão felizes por se reverem. Se eu descer, alguém se encaminhará para mim? Alguém se alegrará com o meu regresso? Disparate, não conheço ninguém aqui. Desce sobre mim uma tristeza miúda, como uma chuvinha fraca. Para quem posso eu voltar? Ninguém está verdadeiramente à minha espera em lugar nenhum. A minha família, que tem cuidado de mim, fá-lo mais por dever para com os outros do que por afeição por mim. O simples pensamento de que posso ser uma dever na vida dos outros acabrunha-me. O motorista reentra apressadamente no autocarro e voltamos a andar. Mais uma vez um balanço pesado. É a última etapa. Mal consigo estar parada. Endireito-me no assento, sem querer, inclino-me um pouco para a frente, procurando inconscientemente acelerar este veículo que teima em mexer mais devagar do que a minha inquietação.
            Sem ver porquê, lembro-me agora de uma outra viagem, desta vez é primavera. Regresso a casa e há alguém à minha espera. Está um homem dentro de um carro estacionado. Vejo-o a seguir com o olhar o movimento do autocarro. É ele que se endireita no assento, crava as mãos no volante. Ainda não me viu. Viu-me agora, sorrimos rasgadamente um para o outro, aceno-lhe. Quando paramos, sou quase a primeira a pôr-me de pé. Educadamente sou passagem às pessoas no corredor. Tremo ligeiramente. A porta vai-se aproximando. Murmuro boa tarde ao motorista com quem cruzo o olhar no momento de sair. Desço os três degraus e ele está já fora do carro. Quase corremos um para o outro, não nos contemos e abraçamo-nos. Mostramo-nos contidos, mas não é assim que nos sentimos. O abraço torna-se mais apertado. Naquele dia, voltei para alguém, houve alegria por eu estar finalmente ali. No tempo em que havia um sentido, um rumo. Depois as coisas foram acabando, desmoronaram-se e hoje ninguém me espera. Sou só eu que vou ao meu encontro.

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