sábado, 15 de fevereiro de 2014

365 dias depois (II)

           Há vinte anos atrás, também era verão e também era amor. Uma rapariga muito jovem despedia-se, numa rua lateral a esta avenida movimentada, de um jovem tão jovem quanto ela. Mais alto, ele debruça-se sobre ela e beija-a com suavidade na testa. É um beijo leve, não houve uma pressão mais forte. Os dois sabiam que era a última vez que se viam, que tudo acabava ali e não era por não se amarem. Ela não devolveu o beijo, deixou-se beijar apenas e, sem o saber ainda, aquele momento ficou para sempre, nunca mais o esqueceu e aprendeu a viver com ele como se fosse uma cicatriz. Os anos fizeram com que olhasse para a cicatriz e quase não se lembrasse como tinha sido feita, habitando-se à marca, familiarizando-se com ela.
            Com o autocarro ainda parado, olhei fixamente para aquele ponto da rua. Os edifícios eram exatamente os mesmos, as mesmas as cores, o mesmo movimento de pessoas a ir e a vir, os mesmos carros parados e em movimento. Como há vinte anos atrás, nenhum destes pormenores é realmente visto por mim. O que estou a olhar é para aquela rapariga que fui, capaz de amar assim, talvez por ter sido uma vez jovem, talvez porque o tempo não me tivesse ainda corroído. Nesse tempo, aguentei aquela despedida quase sem uma palavra, sem uma lágrima, nem uma queixa. Não perguntei porquê, sabia que tinha de ser. Nos dias que se seguiram, tive que aprender a encher aquele vazio. Soube muito bem viver apesar de ter morrido um pouco e soube mostrar-me como se aquele instante não tivesse acontecido e, até hoje, ninguém soube que um dia me despedi de alguém que era tão importante para mim. Nunca mais o vi, nunca mais soube nada dele. Mesmo quando me encontrei com pessoas que o conheciam, nunca perguntei por ele. Ninguém sabia o que tínhamos tido juntos e eu nunca dei o mais pequeno sinal. As coincidências da vida são tão curiosas. Há vinte anos atrás, depois de me ter despedido dele, fui apanhar um autocarro. Desci esta avenida que agora subo para fazer mais uma viagem que há de ser decisiva. Também hoje é um dia de despedida. Sorrio àquela rapariga e despeço-me dela também. A mulher que sou hoje está feliz por ela ter vivido um amor assim, tudo vale a pena quando alma não é pequena, e a minha creio que nunca o foi, parece-me mais de um tamanho excessivo para poder caber em mim.
            O autocarro arrancou finalmente, outra vez o mesmo balanço pesado. Tomada a faixa lateral que dá acesso à autoestrada, começámos a andar cada vez mais depressa, os prédios começaram a suceder-se cada vez com mais rapidez, as pessoas pareciam paradas nos passeios e eu deixei de me conseguir fixar em pontos que me entretivessem os pensamento. Voltei a ficar consciente de mim. Fui obrigada a pensar no que ia fazer. Fiz uma revisão da minha vida. Divorciada, por vontade minha, a bem do rigor é importante dizê-lo para que depois não se diga que isso explica alguma coisa. Mãe de um filho de catorze anos, com quem não consegui ligar-me tanto como desejaria. Ultimamente, tem passado mais tempo com o pai, porque sim, e eu não tenho feito nada para que seja de outra. Microempresária de sucesso – consigo sustentar-me. Sou bastante bonita e sei que sou, daí ser bastante segura. Quando caminho, tenho um tique que é abrir bem os ombros e levantar ligeiramente a cabeça, pareço um pouco altiva, mas é porque quero. Amei e fui amada, mais do que devia e, possivelmente, mais do que merecia. Traí e fui traída, rejeitei e fui rejeitada, sempre mais do que podia ou devia. Excedi-me e os deuses não perdoam e talvez me queiram castigar. Pode bem ser que não haja deuses, que o julgamento a temer seja o nosso, que a condenação tenhamos que ser nós a executá-la. Não sei e sei-o bem.
            O autocarro rola agora livremente na autoestrada pouco congestionada. Vem-me outra cena à memória. Dia de balanço? A viagem é propícia a estes devaneios, a estes reencontros com o nosso passado. Sou, por natureza, reflexiva, ensimesmada. A minha memória não me dá tréguas. De repente, lembro-me de pequenos episódios da minha vida e, à distância dos anos, revivo tão nitidamente esses passos lembrados que eles me despertam, no momento da lembrança, sentimentos de quem está na posição de juiz. Avalio o que fiz, o que disse, as opções que tomei, os deslizes, o mal que fiz aos outros e coro de vergonha, surpreendo-me, sobressalto-me com a minha frieza. Descobri algures que sou uma pessoa fria, que não me emociono com facilidade, que não arranco cabelos, que não grito, não choro, não me apiedo pelos outros. Tenho um bocadinho de desgosto de mim. Há pouco mudei de música, alguém canta nos meus ouvidos que devemos tomar conta de nós próprios. Concordo, tenho de tomar conta de mim, como sei, mais mal do que bem. Deixo aos outros a mesma liberdade. Não tenho tomado bem conta de mim, tenho-me ferido e mutilado, sempre em excesso, sempre mais do que devia.

            Lá me enredei eu nestes meus pensamentos dispersos que se embaraçam uns nos outros. É outra vez verão. Uma pequena vila balnear, numas férias. Uma relação que já durava há tempo, duas pessoas que se conheciam bem e já cansadas um do outro. Não souberam ler os sinais. O dia tinha sido de tensão. Estavam mal-humorados. Não tinham conseguido sintonizar a mesma onda de frequência. Pareciam estar em desacordo acerca de tudo: horários, o que fazer, o que comer. Duas pessoas que nunca se tivessem visto conseguiriam sintonizar-se melhor. Já tinham passado a fase em que eram bem-educados um com o outro. A familiaridade tinha revelado tantas diferenças que já não sabiam em que se sustentar. Depois de um dia feito de pequenas batalhas feita de ironias e de subentendidos, saíram para jantar. Desentenderam-se logo no pedido e a tensão atingiu um tal nível que até o empregado parecia evitar aquela mesa. Houve um momento em, inadvertidamente, as mãos se tocaram e sentiram uma descarga de eletricidade estática. Deve ter sido esse choque que acendeu o rastilho. Quando saíram do restaurante, estavam descontrolados e não havia decoro que os pudesse conter. Discutiram no meio da rua, primeiro em surdina, de dentes rilhados, e olhos baixos. Pararam a meio da marginal e enfrentaram-se como inimigos em que se estavam a tornar. Empurraram-se com força. Avançaram assim pela rua, aos empurrões, bêbados de raiva. As vozes levantaram-se sem darem por isso, porque já não se ouviam. Palavras que quiseram dizer e que nunca poderiam ter sido ditas se fosse amor. Em casa, cega de raiva, atirei-lhe uma bofetada à cara. Não tive tempo de saborear o gosto desse gesto violento, instantaneamente senti a minha cabeça a rodopiar com o impacto da sua mão na minha cara e logo a seguir outra. Caí sobre a cama e ele caiu sobre mim. Perdi a conta às vezes que nos batemos. Não se podia descer mais baixo. Era o fim de tudo. Nessa noite fiz sozinha uma viagem de regresso, em solilóquio a ensinar-me o que fazer depois. Sinto mais viva do que nunca a vergonha daquele dia, só isso. Nada que possa ser lamentado, foi um erro, um dos muitos que cometi. Desta mulher excessiva não me posso despedir, levo-a comigo para onde for, preciso dela para a solução que encontrei.

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