Atravessei
a vila neste estado de espírito, entregue a este meu desporto que é observar os
outros, imaginar-lhes a história que trazem consigo, outra forma de ADN,
identidades intransmissíveis, as histórias não se repetem. Se não há dois
rostos iguais, decerto não haverá duas histórias de vida iguais, ainda que
todas comecem com o nascimento e terminem seja de que maneira for. Mesmo nas
mortes em massa, a forma como cada um enfrenta o momento final é distinta,
inconfundível. Tomo, finalmente, uma rua que sobe ao promontório. Subo, subo,
subo, em ritmo brando, sem pressa. Caminho com os olhos baixos, forçada pela
inclinação. As ruas que atravesso estão sossegadas, parece que toda a gente
saiu para um outro lugar. São ruas sombrias e frescas, escondidas do sol, por
vezes sou surpreendida por uma mais ventosa e um arrepio corre-me pela pele. Há
um ano, não fiz este caminho, vim de carro, conduzi até aqui num estado de
exaltação que não é o mesmo de hoje. Hoje estou tranquila, o terreno que piso é
conhecido, só tenho que fazer com que tudo dê certo, corrigir o erro de cálculo
que não soube prever e que me obrigou a voltar, a terminar o que aqui comecei e
deixei incompleto. Ato falhado.
Quando chego lá acima, tenho que
inverter o rumo. Tomo a direção do sol que se começa a pôr, inclinado já sobre
o horizonte. O ângulo ainda não me encandeia a visão. Nada me incomoda, senão a
preocupação de ser exata e eficaz. Caminho sempre, não sei já a que velocidade.
Todo o meu ser está concentrado. Estou reduzida a um impulso cerebral que
comanda mecanicamente cada um dos meus gestos. Afasto-me da zona das casas.
Cruzo-me com poucas pessoas, o fim da tarde convida mais à esplanada ou ao
regresso a casa. Há trezentos e sessenta e cinco dias era este o quadro. É
preciso que pense agora no que aqui se passou. É esta a minha história. Vim até
aqui com um propósito. Cheguei de carro, que estacionei à beira de uma estrada
de terra, oculta por uns canaviais. À beira do precipício, mirei todo aquele
mar em redor. O local que escolhi é alto e o som do mar chega surdo e
indistinto. Lá em baixo, as ondas criam um manto de espuma muito característico,
que, visto de cima, parece suave e consistente, macio. Nesse dia, as lágrimas
corriam-me pela cara, copiosas, imparáveis. Devo ter soluçado. Vivia um
desespero total, um desamparo e uma solidão que não percebia. Queria ser salva
e ninguém estava por perto. Como é que ninguém sabia que eu precisava tanto de
ajuda? Como é que miraculosamente ao meu lado não se materializava um rosto, um
gesto, a redenção? Porque é que as palavras certas não haviam de ser ditas e eu
veria o que agora não conseguia sequer imaginar. Nada disso aconteceu. Eu
cheguei-me bem à beira, cega ainda das lágrimas. Limpei-as como pude. Olhei em
volta e decidi que assim tinha que ser. Abeirei-me ainda mais do vazio e vi
essa imagem, a de um vazio que vai ao encontro de outro. Inclinei-me bem para a
frente e dei um impulso mais forte ao meu corpo, como quem mergulha, e era o
que eu estava a fazer, a mergulhar na morte porque não suportava a vida.
Ao contrário do que se pensa, a iminência
do fim não é rápida, é lenta, muito lenta. Podia jurar que o meu cérebro se
deslocou todo para um sítio só. Todas as ligações nervosas se devem ter
concentrado na antecipação do choque e da dor que adviria do meu gesto. Não
pensei que ia morrer, creio que pensei que continuaria ainda depois, que
assistiria a tudo e que continuaria a ser eu. O meu corpo embateu finalmente em
alguma coisa, ainda não era a dor, porque continuava a chocar, a rebolar. Agora
o filme era muito, muito rápido. Comecei a sentir pancadas secas e
estremecimentos. Fui sacudida vezes sem conta, sentia a pele a rasgar-se
enquanto caía e rebolava, caía e rebolava, caía e rebolava naquilo que parecia
um infinito. O corpo parou enfim e o que restava de mim, as ligações nervosas
que resistiram no meu centro, apagaram-se e mergulhei na escuridão. Não, não
morri.
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