quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

365 dias depois (V)

            Atravessei a vila neste estado de espírito, entregue a este meu desporto que é observar os outros, imaginar-lhes a história que trazem consigo, outra forma de ADN, identidades intransmissíveis, as histórias não se repetem. Se não há dois rostos iguais, decerto não haverá duas histórias de vida iguais, ainda que todas comecem com o nascimento e terminem seja de que maneira for. Mesmo nas mortes em massa, a forma como cada um enfrenta o momento final é distinta, inconfundível. Tomo, finalmente, uma rua que sobe ao promontório. Subo, subo, subo, em ritmo brando, sem pressa. Caminho com os olhos baixos, forçada pela inclinação. As ruas que atravesso estão sossegadas, parece que toda a gente saiu para um outro lugar. São ruas sombrias e frescas, escondidas do sol, por vezes sou surpreendida por uma mais ventosa e um arrepio corre-me pela pele. Há um ano, não fiz este caminho, vim de carro, conduzi até aqui num estado de exaltação que não é o mesmo de hoje. Hoje estou tranquila, o terreno que piso é conhecido, só tenho que fazer com que tudo dê certo, corrigir o erro de cálculo que não soube prever e que me obrigou a voltar, a terminar o que aqui comecei e deixei incompleto. Ato falhado.
            Quando chego lá acima, tenho que inverter o rumo. Tomo a direção do sol que se começa a pôr, inclinado já sobre o horizonte. O ângulo ainda não me encandeia a visão. Nada me incomoda, senão a preocupação de ser exata e eficaz. Caminho sempre, não sei já a que velocidade. Todo o meu ser está concentrado. Estou reduzida a um impulso cerebral que comanda mecanicamente cada um dos meus gestos. Afasto-me da zona das casas. Cruzo-me com poucas pessoas, o fim da tarde convida mais à esplanada ou ao regresso a casa. Há trezentos e sessenta e cinco dias era este o quadro. É preciso que pense agora no que aqui se passou. É esta a minha história. Vim até aqui com um propósito. Cheguei de carro, que estacionei à beira de uma estrada de terra, oculta por uns canaviais. À beira do precipício, mirei todo aquele mar em redor. O local que escolhi é alto e o som do mar chega surdo e indistinto. Lá em baixo, as ondas criam um manto de espuma muito característico, que, visto de cima, parece suave e consistente, macio. Nesse dia, as lágrimas corriam-me pela cara, copiosas, imparáveis. Devo ter soluçado. Vivia um desespero total, um desamparo e uma solidão que não percebia. Queria ser salva e ninguém estava por perto. Como é que ninguém sabia que eu precisava tanto de ajuda? Como é que miraculosamente ao meu lado não se materializava um rosto, um gesto, a redenção? Porque é que as palavras certas não haviam de ser ditas e eu veria o que agora não conseguia sequer imaginar. Nada disso aconteceu. Eu cheguei-me bem à beira, cega ainda das lágrimas. Limpei-as como pude. Olhei em volta e decidi que assim tinha que ser. Abeirei-me ainda mais do vazio e vi essa imagem, a de um vazio que vai ao encontro de outro. Inclinei-me bem para a frente e dei um impulso mais forte ao meu corpo, como quem mergulha, e era o que eu estava a fazer, a mergulhar na morte porque não suportava a vida.

            Ao contrário do que se pensa, a iminência do fim não é rápida, é lenta, muito lenta. Podia jurar que o meu cérebro se deslocou todo para um sítio só. Todas as ligações nervosas se devem ter concentrado na antecipação do choque e da dor que adviria do meu gesto. Não pensei que ia morrer, creio que pensei que continuaria ainda depois, que assistiria a tudo e que continuaria a ser eu. O meu corpo embateu finalmente em alguma coisa, ainda não era a dor, porque continuava a chocar, a rebolar. Agora o filme era muito, muito rápido. Comecei a sentir pancadas secas e estremecimentos. Fui sacudida vezes sem conta, sentia a pele a rasgar-se enquanto caía e rebolava, caía e rebolava, caía e rebolava naquilo que parecia um infinito. O corpo parou enfim e o que restava de mim, as ligações nervosas que resistiram no meu centro, apagaram-se e mergulhei na escuridão. Não, não morri. 

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